quinta-feira, 27 de setembro de 2018

A DEGRADAÇÃO PELO TRABALHO, POR EMIL CIORAN








Os homens geralmente trabalham demais para que possam permanecer fiéis a eles mesmos. O trabalho: uma maldição que o homem transformou em volúpia. Labutar com todas as suas forças somente pelo amor da labuta, encontrar felicidade num esforço que não conduz a nada além de realizações sem valor, estimar que somente por meio do trabalho incessante se possa obter o que quer que seja - eis algo revoltante e incompreensível. O trabalho permanente e intenso embrutece, banaliza e torna impessoal. O centro de interesse do indivíduo desloca-se do seu meio subjetivo em direção a uma insossa objetividade; o homem se desinteressa então de seu próprio destino, de sua evolução interior, para se ligar a qualquer outra coisa: a obra verdadeira, que deveria ser uma atividade de permanente transfiguração, torna-se um meio de exteriorização que lhe faz abandonar o mais íntimo de seu ser. É significativo o fato de que trabalho tenha vindo a designar uma atividade puramente exterior: atividade em que o homem não se cumpre, mas cumpre. O fato de que todo mundo sente-se obrigado a exercer uma atividade e a adotar um estilo de vida que, na maior parte dos casos, não lhe convém, ilustra esta tendência ao embrutecimento pelo trabalho. O homem vê no seu conjunto de possibilidades um benefício considerável; mas o frenesi do labor testemunha, nele, uma propensão ao mal. No trabalho, o homem se esquece de si; isto não o conduz, apesar disto, a uma doce inocência, mas a um estado vizinho da imbecilidade. O trabalho transformou o sujeito humano em objeto e fez do homem uma besta que trai suas origens. Ao invés de viver por si mesmo - não no sentido do egoísmo, mas do florescimento -, o homem torna-se escravo impotente da realidade exterior. Onde encontrar o êxtase, a visão, a exaltação? Onde está a loucura suprema, a volúpia autêntica do mal? A volúpia negativa que se encontra no culto ao trabalho prende-se antes à miséria, à insipidez e a uma mesquinhez detestável. Por que os homens não se decidem por bruscamente dar fim ao seu labor, a fim de iniciar um novo trabalho sem qualquer semelhança com aquele a que se dedicaram inutilmente até então? Será que a consciência subjetiva da eternidade resistiu? Se a atividade frenética, o trabalho ininterrupto e a trepidação destruíram algo, isto foi o verdadeiro sentido da eternidade - uma vez que o trabalho é a sua maior negação. Quanto mais a perseguição pelos bens materiais e o trabalho cotidiano aumentam, mais a eternidade torna-se distante e inacessível. Daí derivam as perspectivas tão delimitadas dos espíritos muito empreendedores, a insipidez de seu pensamento e de seus atos. E, ainda que eu não oponha ao trabalho nem a contemplação passiva nem o devaneio difuso, mas uma transfiguração irrealizável, eu prefiro uma preguiça compreensível a uma atividade frenética e intolerante. Para despertar o mundo, deve-se exaltar a preguiça. Isto porque o preguiçoso tem infinitamente mais senso metafísico do que o agitado.


(Nos Cumes do Desespero; tradução de Guimarães Silva)


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