domingo, 26 de junho de 2011

O ÓCIO DE OSCAR WILDE, por Enrique Vila-Matas




Um desejo antigo de Oscar Wilde, expresso em The critic as artist, sempre foi “não fazer absolutamente nada, que é a coisa mais difícil do mundo, a mais difícil e a mais intelectual”.


Em Paris, nos dois últimos anos de sua vida, graças nada menos ao fato de sentir-se aniquilado moralmente, pôde tornar realidade seu antigo desejo de não fazer nada. Porque, nos dois últimos anos de sua vida, Wilde não escreveu, decidiu deixar de fazê-lo para sempre, conhecer outros prazeres, conhecer a sábia alegria de não fazer nada, dedicar-se ao extremo ócio e ao absinto. O homem que havia dito que “o trabalho é a maldição das classes bebedoras” fugiu da literatura como da peste e se dedicou a passear, a beber e, em muitas ocasiões, à contemplação pura e simples.


“Para Platão e Aristóteles”, escreveu ele, “a inatividade total sempre foi a mais nobre forma da energia. Para as pessoas da mais alta cultura, a contemplação sempre tem sido a única ocupação adequada ao homem”.


Também havia dito que “o eleito vive para não fazer nada”, e foi assim que viveu seus dois últimos anos de vida. Às vezes recebia a visita do fiel amigo Frank Harris – seu futuro biógrafo –, que, assustado ante a atitude de absoluta folga de Wilde, costumava fazer sempre o mesmo comentário:


- Estou vendo que você continua sem trabalhar...


Uma tarde, Wilde lhe respondeu:


- É que a laboriosidade é o germe de toda a fealdade, mas não deixei de ter ideias e, tem mais, se quiser, vendo-lhe uma.


Naquela tarde, por cinquenta libras, vendeu a Harris o esboço e o argumento de uma comédia que este rapidamente e, também muito rapidamente, com o título de Mr. And Mrs. Daventry estreou no Royalty Theatre de Londres, no dia 25 de outubro de 1900, quase um mês antes da morte de Wilde em seu cubículo do Hotel d’Alsace de Paris.


Antes do dia da estreia e também nos dias que se seguiram, ao longo de seu último mês de vida, Wilde entendeu que uma extensão de sua felicidade podia se dar – em Londres a obra estava tendo grande sucesso – com o sistemático pedido de mais royalties pela obra estreada no Royalty, de modo que se dedicou a mortificar Harris com toda espécie de mensagens – por exemplo: “Você não só me roubou a obra, como também a aruinou, portanto quero mais cinquenta libras”, até que morreu em seu cubículo de hotel.


No dia de sua morte, um jornal parisiense lembrou muito oportunamente algumas palavras de Wide: “Quando não conhecia a vida, eu escrevia; agora que conheço seu significado, não tenho mais nada a escrever”.


Essa frase coincide muito bem com o final de Wilde. Morreu depois de passar dois anos de grande felicidade, sem a menor necessidade de escrevere, de acrescentar algo mais ao já escrito. É muito provável que, ao morrer, tenha alcançado a plenitude do desconhecido e tenha descoberto o que era exatamente não fazer nada, e por que isso era na verdade o mais difícil do mundo e o mais intelectual.


Cinquenta anos após sua morte, por essas mesmas ruas do Quartier Latin que ele havia prercorrido com extrema ociosidade em seu radical abandono da literatura, aparecia em um muro, a cem metros do Hotel d’Alsace, o primeiro sinal de vida do movimento radical do situacionismo, a primeira irrupção pública de alguns agitadores sociais que em sua deriva vital gritariam Não a tudo que lhes fosse colocado à frente, e gritariam isso dominados pelas noções de desamparo e desarraigamento, mas também de felicidade, que tinham movido os derradeiros fios da vida de Wilde.


Esse primeiro sinal de vida situacionista foi uma piração, a cem metros do Hotel d’Alsace. Disseram que podia ser uma homenagem a Wilde. A pichação, escrita por aqueles que, sob ditado de Guy Debord, não tardariam em propor que se abrissem ao tráfego andante os telhados das grandes cidades, dizia isto: “Não trabalhe nunca”.

Barteleby e companhia, tradução de Maria Carolina de Araújo e Josely Vianna Baptista

domingo, 5 de junho de 2011

PREGUIÇA NO FRIO

Este outono com jeito de inverno. Frio. Muito frio e muita preguiça.

Então, uma crônica do Blog do Capita, assinada por Capitão Rodrigo (endereço lá embaixo). E mais não digo, porque domingo é dia de preguiça.


Barulho na sala fria

(Toulousse-Lautrec)

Nelson - Sussurrou Virgínia, baixinho enquanto cutucava seu marido com as mãos delicadas e frias sob as pesadas cobertas de inverno. -Acorda, Nelson!
-Hrhhhmgh...
-Acorda, Nelson, pelo amor de Deus, homem!
-Guiéguifóin, Virxinhanhmm...? - Resmungou Nelson enquanto tentava escapar das mãozinhas da esposa, que o apunhalavam como pequenas pás de gelo, virando as costas pra ela.
-Nelson, tem alguém na casa! - Exclamou Virgínia em um sussurro.
-Nhaum tem ningfum na casa... - Replicou Nelson, ainda parcialmente adormecido.
-Eu tô ouvindo gente caminhando na sala, Nelson!
-É o gachurrum...
-A gente não tem cachorro, criatura!
Nelson acordou.
-Tá, tá... Peraí... - Aquiesceu levantando-se com dificuldade, sentindo na boca o gosto rançoso da saliva do sono. Sentou-se na cama o melhor que pôde sem sair debaixo das cobertas e inclinou a cabeça em direção à porta do quarto.
-Ah, Virgínia... Não tem ninguém na sala, é só a janela aberta, são os carros passando lá embaixo...
-Não, Nelson, eu juro! Era gente caminhando! Eu ia lá deixar a janela aberta com essa friagem?
-Não, meu amor, tu tava meio dormindo, e pensou que fossem passos, mas não eram, era apenas o som dos carros que enganou o teu subconsciente, vamo dormir, tá, por favor? Que eu tenho que acordar cedo amanhã e tá frio demais?
-Ai, Nelsoooooooooooon, dá uma olhada que seja, pelo amor de Deus, não vou conseguir dormir se tu não for até a sala pra ver se não tem, mesmo alguém, lá!
Nelson levantou com resmungos de protesto enquanto tentava fazer os dentes pararem de bater, pôs-se de pé segurando os braços junto ao peito e calçou as pantufas com pressa. Caminhou com passos apertados em direção à porta do quarto e a abriu, amaldiçoando o mundo enquanto o ar frio que vinha dos demais cômodos o atingiam como se fossem um tornado. Andou arrastando os pés pela casa por breves minutos, então voltou à porta do quarto onde encontrou Virgínia coberta até o nariz com o edredon.
-Não tem ninguém aqui, e a maldita da janela tava aberta, mesmo, a sala parecia a porra do Pólo Norte.
-Ai, amor, brigada, que susto...
-Tudo bem, vamo dormir, então?
-Tá. Ah! Amor, antes de tu deitar, pega o meu remédio pra cólica no banheiro e um copo d'água na cozinha?
-Pego. - Assentiu um confuso e rabugento Nelson enquanto andava em direção à cozinha novamente, ainda batendo dentes de frio e com os braços encolhidos. Virgínia sorriu enquanto o marido lhe entregava o remédio e a água, e, se tinha alguma dor na consciência pela farsa, ela sumiu quando teve que tirar os braços delicados de sob as cobertas quentinhas pra apanhar o copo.


http://casadocapita.blogspot.com/2011/03/barulho-na-sala-fria.html