sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O ELOGIO DO LAZER, POR BERTRAND RUSSEL





“Quando uma pessoa, que já possui o bastante para viver, resolve ocupar-se em uma atividade social, a de professor ou a de datilógrafo, por exemplo, diz-se que essa pessoa - seja homem ou mulher - está tirando o pão da boca dos outros, e, por conseguinte, procedendo mal. Se este argumento fosse conclusivo, bastaria simplesmente que todos nós fossemos indolentes e assim teríamos todos as bocas cheias de pão. Mas as pessoas que dizem tais coisas se esquecem de que, habitualmente, o homem gasta os proventos de seu trabalho, e, assim o fazendo, está empregando esse numerário.




Gastando, pois, sua renda, o homem põe na boca de outros, quando lhas tira, ao ganhá-la. Por este ponto de vista, o verdadeiro vilão é o homem parcimonioso. Se ele, simplesmente, puser suas economias num pé-de-meia, como o proverbial camponês francês, é evidente que não está dando o devido emprego a seu dinheiro. Mas se investe suas economias, o assunto é menos evidente e diferentes casos podem apresentar-se.


Uma das maneiras mais comuns de empregar economias é emprestá-las ao governo. Em virtude desse fato, grande verba dos orçamentos da maioria das administrações públicas de países civilizados é empregada no pagamento do após-guerra ou na preparação de guerras futuras. O homem que empresta dinheiro ao governo encontra-se na mesma posição do homem mau de Shakespeare, que assalariava assassinos. O resultado líquido que tem o homem de hábitos econômicos é fazer aumentar as forças armadas do Estado ao qual ele empresta suas economias. Evidentemente, melhor seria se ele mesmo gastasse o seu dinheiro, ainda que o fizesse na bebida ou no jogo.”





“Desejo dizer, com toda seriedade, que grande mal está sendo causado ao mundo moderno, com a crença na virtuosidade do trabalho e com a de que o caminho para a felicidade e prosperidade consiste na sua diminuição organizada.”
“Antes de tudo, o que é o trabalho? Há trabalho de duas espécies: a primeira consiste em alterar a posição da matéria na terra, ou próxima à sua superfície, relativamente à outra matéria; a segunda, em dizer aos outros que façam assim. A primeira espécie é desagradável e mal paga; a segunda, agradável e bem remunerada. Esta última é capaz de ilimitada extensão - não há somente aqueles que dão ordens, mas os que dão conselhos sobre as coisas que deveriam ser ordenadas. Usualmente, as corporações organizadas dão duas espécies opostas de conselhos - é o que se chama política. A habilidade necessária para essa espécie de trabalho não é o conhecimento dos assuntos a respeito dos quais são dados os conselhos, mas a arte de falar e de escrever persuasivamente: isto é, a arte da propaganda.


Na Europa, há uma terceira classe de homens, mais respeitada que qualquer uma dessas de trabalhadores, o que não acontece na América. Há os homens que, pelo direito de propriedade, podem obrigar os outros a pagar pelo privilégio de poderem viver e trabalhar em suas terras. Esses proprietários são, em geral, indolentes, e, por isso, é de se esperar que sejam louvados. Infelizmente, sua ociosidade só pode tornar-se realidade pelo trabalho dos outros. Na verdade, seu desejo de ter uma confortável ociosidade é, historicamente, a fonte de todo o Evangelho do Trabalho. O que nunca desejaram é que outros pudessem seguir seu exemplo.”





“Do início da Civilização até a Revolução Industrial, por via de regra, um homem podia produzir, pelo trabalho árduo, pouco mais do que era necessário para sua subsistência e de sua família, ainda que a mulher trabalhasse, pelo menos, tão intensamente quanto ele, e os filhos o ajudassem com seu trabalho, logo que tivessem a idade suficiente para fazê-lo. O pequeno excedente sobre o estritamente necessário não era deixado para aqueles que o produziam, mas usurpado pelos guerreiros e pelos sacerdotes de então. Em época de escassez, não havia excedente. Contudo, os sacerdotes e guerreiros retinham tanto como nos tempos de abundância, resultando, por esse motivo, que os trabalhadores passavam fome. (...)
É evidente que, nas primitivas comunidades, os camponeses se deixados à vontade, não se teriam privado do escasso excedente que sustentava os sacerdotes e os guerreiros, mas teriam ou produzido menos ou consumido mais. A princípio, a força bruta compeliu-os a produzir e a se desfazer do excedente. Todavia, pouco a pouco, foi possível induzir muitos deles a aceitarem uma ética, segundo a qual era de seu dever trabalhar arduamente, se bem que uma parte de seu trabalho viesse a manter outros na ociosidade.”


“Até nossos dias 99% dos assalariados ingleses ficariam verdadeiramente chocados se fosse proposto que o rei não tivesse renda maior que a de um trabalhador qualquer. A concepção do dever, historicamente falando, tem sido um meio usado pelos detentores do poder para induzirem os outros a viverem mais para os interesses dos patrões que para os seus próprios. Naturalmente, os que estão com o poder ocultam esse fato, fazendo acreditar que os seus interesses são idênticos aos maiores interesses da humanidade.”






“A técnica moderna tornou o lazer possível, a fim de diminuir consideravelmente a quantidade de trabalho exigida para assegurar a subsistência de todos. Isso se tornou evidente durante a guerra. Naquela época, todos os homens das forças armadas, todos os homens e mulheres ocupados na produção de munições, nos serviços de espionagem, na propaganda de guerra ou nos departamentos oficiais relacionados com a guerra, foram retirados de outras ocupações produtivas. A despeito disso, o nível de bem-estar físico entre os assalariados inexperientes do lado dos Aliados era mais elevado do que antes. A significação desse fato acha-se oculta no princípio financeiro. Tomar emprestado é alimentar o presente com o futuro. Mas teria sido naturalmente impossível - um homem não pode comer um pão que ainda não existe. A guerra demonstrou, de modo explícito, que, pela organização científica da produção, é possível manter as populações modernas com regular conforto, numa pequena parte do âmbito de trabalho do mundo moderno. Se, no fim da guerra, a organização científica que foi criada para libertar o homem do trabalhado relacionado com a luta e as munições tivesse sido conservada e as horas de trabalho diminuídas para quatro, tudo estaria muito bem. Mas, em lugar disso, o velho caso foi reestabelecido e aqueles cujo trabalho era reclamado tiveram que trabalhar longas horas e o resto morrer de fome, por falta de emprego. Porque o trabalho é um dever, e um homem não poderia receber salário na proporção do que produzia, mas na proporção de seu valor, demonstrado no trabalho.”


“Se o trabalhador comum trabalhasse quatro horas por dia, isto seria o suficiente para todos, e não haveria falta de emprego, admitindo-se uma dose muito moderada de sensata organização. Essa ideia choca os endinheirados porque eles estão certos de que o pobre não saberia como empregar tanto “lazer”. Nos Estados Unidos, os homens, muitas vezes, trabalham longas horas mesmo quando já são endinheirados.”





“Deve-se admitir que o uso acertado do “lazer” é um produto da civilização e da educação. Um homem que trabalhou longas horas durante toda a vida, ficará enfadado se, de repente, ficar sem ter o que fazer. Mas, sem um razoável descanso, o homem sentir-se-á privado de muitas das melhores coisas. Nenhum motivo existe para que a maioria do povo deva sofrer dessa privação. Somente um ascetismo insensato nos faz continuar a insistir em que se deva trabalhar, excessivamente, agora que essa necessidade já não existe.”


“A atitude das classes dirigentes - especialmente a das que realizam a propaganda educacional - no que diz respeito à dignidade do trabalho, é quase exatamente a que as classes dirigentes do mundo têm sempre tido para com o que era chamado o “pobre honesto”. Diligência, sobriedade, boa vontade para trabalhar longas horas, a fim de obter vantagens remotas, até mesmo a submissão à autoridade, tudo isso reaparece.”





“Pouco nos importamos com a justiça econômica, de modo que uma grande porcentagem de lucro da produção total, se canaliza para uma parte mínima da população, dentro da qual há muitos que não executam trabalho de espécie alguma. Em vista da ausência de qualquer controle central para a produção, fabricamos um monte de coisas que não são necessárias. Podemos conservar uma grande porcentagem da população operária na ociosidade, porque nos é dado dispensar o seu trabalho, fazendo com que os outros trabalhem excessivamente. Quando todos esses métodos se tornarem inadequados, o resultado será a guerra. Induzimos um certo número de pessoas a fabricarem altos explosivos e outros a fazê-los explodirem, como se fossem crianças que tivessem acabado de descobrir fogos de artifício. Por uma combinação de todos esses inventos, fazemos o possível, ainda que com dificuldade, para conservar viva a noção de que uma grande parte de árduo trabalho manual deve ser o quinhão do homem médio.”


“A solução nacional, logo que for possível atender as necessidades e o conforto de todos, seria reduzir, gradualmente, as horas de trabalho, permitindo que o voto popular decidisse qual das duas coisas seria prefirível - mais “lazer” ou mais “mercadorias”. Mas, tendo sido ensinado a suprema virtude do trabalho penoso, é difícil ver como as autoridades possam almejar um paraíso no qual haja mais lazer e menos trabalho. Parece mais provável que eles possam encontrar novos planos, segundo os quais a ociosidade presente deva ser sacrificada em benefício da futura produtividade.”







“Se perguntarmos ao trabalhador o que pensa a respeito da melhor parte de sua vida, provavelmente não responderá: “gosto do trabalho manual porque estou cumprindo a mais nobre tarefa do homem e gosto de pensar como o homem é capaz de transformar este planeta. É verdade que meu corpo exige períodos de repouso e que tenha de fazê-lo da melhor maneira possível, mas nunca me sinto tão feliz, como quando o dia amanhece, e posso voltar ao trabalho do qual brota todo o meu contentamento”. Jamais ouvi um operário expressar-se desse modo. Eles consideram o trabalho como deveria ser considerado, isto é, como um meio de subsistência e é das suas horas de lazer que eles tiram a felicidade - seja ela qual for - que possam gozar.”


“O homem moderno julga que tudo deve ser feito por causa de alguém mais e nunca tão somente em seu próprio interesse.”





“O indivíduo em nossa sociedade trabalha para ter lucro. Mas o fim social de seu trabalho está no consumo do que ele produz. É este divórcio entre o indivíduo e o objetivo social da produção que torna difícil, para os homens, pensarem com clareza num mundo onde o lucro é o incentivo da indústria. Pensamos muitíssimo na produção e pouquíssimo no consumo. Um dos resultados é que emprestamos pouca importância ao gozo e à felicidade e não julgamos a produção pelo prazer que ela proporciona ao consumidor.


Quando sugiro que as horas de trabalho devam ser reduzidas a quatro não estou fazendo supor que o resto do tempo seja gasto em meras futilidades. O que eu quero dizer é que quatro horas de trabalho habilitam um homem para as necessidades e o conforto elementares da vida e que o resto do tempo poderia ser empregado, como lhe aprouvesse, em coisa úteis. É parte indispensável de qualquer sistema social que a educação deveria ser levada muito além do que ela o é, presentemente, e, em parte, teria por objetivo tornar o homem capaz de usar o “lazer” inteligentemente. E quero, sobretudo, acentuar que não estou pensando em coisas que poderiam ser consideradas “altamente intelectuais”. As danças campesinas se extinguiram, exceto nas zonas rurais longínquas, mas os estímulos que causaram o seu cultivo ainda devem existir na natureza humana. Os prazeres das populações urbanas têm se tornado, sobretudo, passivos, como ir ao cinema, assistir a uma partida de futebol, ouvir uma sessão de rádio, e assim por diante. Isso resulta do fato de suas energias terem sido absorvidas inteiramente pelo trabalho. Se elas tivessem uma vida de mais “lazer”, poderiam usufruir prazeres nos quais tomassem parte mais ativa.”





“Este sistema de existir uma classe sem ocupação, hereditária, isenta de deveres, foi, todavia, extremamente nocivo. Nenhum dos membros da classe foi instruído no sentido de ser trabalhador e a classe, como um todo, não era excepcionalmente inteligente. A classe pôde produzir um Darwin, mas, em face dele, se encontravam milhares de cavalheiros que nunca pensaram em coisa mais inteligente do que caçar raposas e castigar caçadores furtivos. No momento, as universidades estão em condições de fornecer, de um modo sistemático, o que a classe sem ocupação forneceu acidentalmente, como um subproduto. Isso constitui um grande melhoramento, mas apresenta certas desvantagens. A vida universitária é tão diferente do mundo em liberdade que o homem que vive num milieu acadêmico tende a desconhecer as preocupações e problemas do homem e da mulher; além disso, a maneira de se exprimirem causa uma influência contrária a que deveriam causar sobre o público em geral.”


“Num mundo onde ninguém é obrigado a trabalhar mais do que quatro horas por dia, todo indivíduo, possuído de curiosidade científica, será capaz de entregar-se a ela, e todo pintor poderá preparar os melhores quadros sem morrer de fome. Os jovens escritores não serão obrigados a escreverem coisas sensacionais para atrair a atenção, tendo em vista adquirir a independência econômica necessária, para escrever obras monumentais para o que aliás, chegado o momento, já terão perdido o gosto e a capacidade. Os homens que, em seu trabalho profissional, se tornaram interessados por determinado aspecto da economia política ou do governo, serão capazes de desenvolver suas ideias, sem a separação acadêmica, a qual torna carente de realidade o trabalho dos economistas universitários. O médico terá tempo para se por em dia com os progressos da medicina, o professor não terá de lutar exasperadamente para ensinar, por métodos rotineiros, coisas que aprenderam na mocidade, e que, com o correr dos tempos, ficou provado não serem verdadeiras.
Sobretudo, haverá felicidade e alegria de viver, em vez de nervos em frangalhos, desgaste e dispepsia. O trabalho deve ser dosado para tornar o “lazer” delicioso e nunca para produzir o esgotamento. Uma vez que os homens não se cansam em suas horas de “lazer”, a eles pouco importa que os divertimentos sejam passivos ou insípidos. Pelo menos, um por cento, provavelmente, dedicará o tempo que não foi gasto em pesquisas de alguma importância pública e, uma vez que não dependem dessas mesmas pesquisas para sua manutenção, sua originalidade terá livre curso e não haverá mais necessidade de conformar-se com padrões estabelecidos pelos pundites de idade madura.





Mas, não é somente nesses casos excepcionais que as vantagens do “lazer” aparecerão. Ordinariamente, os homens e as mulheres comuns que têm a oportunidade de uma vida feliz se tornarão mais bondosos, menos opressores e menos inclinados a ver os outros com suspeita. O gosto pela guerra desaparecerá, em parte, por essa razão e, em parte, porque implica um grande e severo trabalho para todos. A boa índole é a única entre todas as qualidades morais a de que mais precisa o mundo, e a boa índole é o resultado do sossego e da segurança para todos; mas, em vez disso, o que escolhemos foi o trabalho demais para uns e a fome para outros. Até agora, continuamos a ser tão ativos quanto o éramos antes da existência das máquinas. Por este ponto de vista, temos sido insensatos, mas não há razão para continuarmos a sê-lo indefinidamente.”


segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

UM DOGMA DESASTROSO, de Paul Lafargue




(Primeiro capítulo da obra O DIREITO À PREGUIÇA)



“Sejamos preguiçosos em tudo,
exceto em amar e em beber,
 exceto em sermos preguiçosos.”

 LESSING


Uma estranha loucura se apossou das classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho, levado até ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e da sua progenitora. Em vez de reagir contra esta aberração mental, os padres, os economistas, os moralistas sacrossantificaram o trabalho. Homens cegos e limitados, quiseram ser mais sábios do que o seu Deus; homens fracos e desprezíveis, quiseram reabilitar aquilo que o seu Deus amaldiçoara. Eu, que não confesso ser cristão, economista e moralista, recuso admitir os seus juízos como os do seu Deus; recuso admitir os sermões da sua moral religiosa, econômica, livre-pensadora, face às terríveis conseqüências do trabalho na sociedade capitalista.




Na sociedade capitalista, o trabalho é a causa de toda a degenerescência intelectual, de toda a deformação orgânica. Comparem o puro-sangue das cavalariças de Rothschild, servido por uma criadagem de bímanos, com a pesada besta das quintas normandas que lavra a terra, carrega o estrume, que põe no celeiro a colheita dos cereais. Olhem para o nobre selvagem, que os missionários do comércio e os comerciantes da religião ainda não corromperam com o cristianismo, com a sífilis e o dogma do trabalho, e olhem em seguida para os nossos miseráveis criados de máquinas (1) 






Quando, na nossa Europa civilizada, se quer encontrar um traço de beleza nativa do homem, é preciso ir consumí-lo nas nações onde os preconceitos econômicos ainda não desenraizaram o ódio ao trabalho. A Espanha, que infelizmente degenera, ainda se pode gabar de possuir menos fábricas do que nós prisões e casernas; mas o artista regozija-se ao admirar o ousado Andaluz, moreno como as castanhas, direito e flexível como uma haste de aço; e o coração do homem sobressalta-se ao ouvir o mendigo, soberbamente envolvido na sua capa esburacada, chamar amigo aos duques de Ossuna. Para o Espanhol, em cujo país o animal primitivo não está atrofiado, o trabalho é a pior das escravaturas (2) Os Gregos da grande época também só tinham desprezo pelo trabalho: só aos escravos era permitido trabalhar, o homem livre só conhecia os exercícios físicos e os jogos da inteligência. Também era a época em que se caminhava e se respirava num povo de Aristóteles, de Fídias, de Aristófanes; era a época em que um punhado de bravos esmagava em Maratona as hordas da Ásia que Alexandre ia dentro em breve conquistar. Os filósofos da antigüidade ensinavam o desprezo pelo trabalho, essa degradação do homem livre; os poetas cantavam a preguiça, esse presente dos Deuses: 

O Meliboe, Deus nobis hoec otia fecit (3)

Cristo pregou a preguiça no seu sermão na montanha:

”Contemplai o crescimento dos lírios dos campos, eles não trabalham nem fiam e, todavia, digo-vos, Salomão, em toda a sua glória, não se vestiu com maior brilho.” (4) 

Jeová, o deus barbudo e rebarbativo, deu aos seus adoradores o exemplo supremo da preguiça ideal; depois de seis dias de trabalho, repousou para a eternidade.







Em contrapartida, quais são as raças para quem o trabalho é uma necessidade orgânica? Os “Auvergnats”; os Escoceses, esses “Auvergnats” das ilhas britânicas; os Galegos, esses “Auvergnats” da Espanha; os Pomeranianos, esses “Auvergnats” da Alemanha; os Chineses, esses “Auvergnats” da Ásia. Na nossa sociedade, quais são as classes que amam o trabalho pelo trabalho? Os camponeses proprietários, os pequeno-burgueses, uns curvados sobre as suas terras, os outros retidos pelo hábito nas suas lojas, mexem-se como a toupeira na sua galeria subterrânea e nunca se endireitam para olhar com vagar para a natureza.

E, no entanto, o proletariado, a grande classe que engloba todos os produtores das nações civilizadas, a classe que, ao emancipar-se, emancipará a humanidade do trabalho servil e fará do animal humano um ser livre, o proletariado, traindo os seus instintos, esquecendo-se da sua missão histórica, deixou-se perverter pelo dogma do trabalho. Rude e terrível foi a sua punição. Todas as misérias individuais e sociais mereceram da sua paixão pelo trabalho.




NOTAS: 

(1) Os exploradores europeus param espantados diante da beleza física e da atitude orgulhosa dos homens das tribos nômades primitivas, não manchadas pelo que Paeppig chamava o “bafo envenenado da civilização”. Ao falar dos aborígines das ilhas da Oceania, lorde George Champbell escreve: “No mundo não há povo que impressione mais à primeira vista. A sua pele lisa e de um tom ligeiramente acobreado, os seus cabelos louros e ondulados, o seu belo e alegre rosto, numa palavra, toda a sua pessoa formava uma nova e esplêndida amostra do genus homo; o seu aspecto físico dava a impressão de uma raça superior à nossa.” Os civilizados da Roma antiga, os Césares, os Tácitos, contemplavam com a mesma admiração os germanos das tribos comunistas que invadiam o Império Romano. – Tal como Tácito, Salviano, o padre do século V, a que chamaram o mestre dos bispos, apresentava os bárbaros como exemplo aos civilizados e aos cristãos: “Somos impudicos no meio do bárbaros, que são mais castos do que nós. Mais do que isso, os bárbaros ficam magoados com a nossa lascívia, os Godos não suportam que haja entre eles debochados da sua nação; entre eles, só os Romanos, pelo triste privilégio da sua nacionalidade e do seu nome, têm o direito de serem impuros. [A pederastia estava então em grande moda entre os pagãos e os cristãos...] Os oprimidos vão para junto dos bárbaros procurar a humanidade e um abrigo” (De Gubernatione Dei). – A velha civilização e o cristianismo nascente corromperam os bárbaros do velho mundo, tal como o cristianismo envelhecido e a moderna civilização capitalista corrompem os selvagens do novo mundo. O Sr. F. c Play, cujo talento de observador devemos reconhecer, mesmo quando se repelem as suas conclusões sociológicas, manchadas de prudhomismo filantrópico e cristão, diz no seu livro Les Ouvriers européens (“Os Operários Europeus”) (1885): “A propensão dos Bachkires para a preguiça [os Bachkires são pastores seminômades da vertente asiática dos Urais], as distrações da vida nômade, os hábitos de meditação que fazem nascer nos indivíduos mais dotados comunicam por vezes a estes uma distinção de maneiras, uma subtileza de inteligência e de Juízo que raramente se notam no mesmo nível social numa civilização mais desenvolvida... O que mais lhes repugna são os trabalhos agrícolas; fazem tudo exceto aceitar a profissão de agricultor.” De fato, a agricultura é a primeira manifestação do trabalho servil na humanidade. Segundo a tradição bíblica, o primeiro criminoso, Caim, é um agricultor.

(2) O provérbio espanhol diz: Descansar es salud (Descansar é saúde).

(3) Ó Melibeu, um Deus deu-nos esta ociosidade. Virgílio, conômico (Ver apêndice).

(4) Evangelho segundo São Mateus, cap
. VI.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

MACUNAÍMA - O HERÓI SEM NENHUM TRABALHO








Em Macunaíma, Mário de Andrade questiona a idéia de preguiça como fraqueza e valoriza o ócio criativo do brasileiro, que considerava libertário



Celio Turino

“Ai! que preguiça!...”. Foram estas as primeiras palavras de Macunaíma, “herói de nossa gente”, imortalizadas por Mário de Andrade. Nesta obra, o autor se assumiu na função de poeta épico e reuniu minuciosamente as fantasias e as histórias que compõem o imaginário do povo brasileiro, assim como Homero percebeu nas batalhas troianas e nas aventuras de Ulisses a alma do povo grego.

Em Macunaíma, obra definida por Mário de Andrade como uma rapsódia brasileira, a identidade dos brasileiros vai se revelando ao compasso da narrativa, na descrição de “causos” e personagens populares, na “desgeografização” de territórios e na “destemporalização” de histórias.


“Macunaíma, herói de nossa gente, era preto retinto e filho do medo da noite”. Nascido tapanhuma, índio das margens do Uraricoera, essa tribo inventada para designar os negros vistos pelos povos da terra. Em tupi, os povos de fora recebiam duas designações: tapuy-una-ô – gente preta – e tapuitinga – gente branca. Macunaíma era um tapuy-una-ô, um tapanhuma, e foi brilhantemente representado no cinema por Grande Otelo.

A história nos apresenta um herói sobre-humano, “nascido no fundo do mato virgem”, que tem na busca da muiraquitã perdida a construção de sua aventura. Entre inúmeros desafios, ele deveria ir a São Paulo para reconquistar seu talismã, que estava com o gigante capitalista Venceslau Pietro Pietra, ou o regatão da Amazônia, aquele que regateia, que transforma em mercadoria cada coisa ou pessoa que enconta, também conhecido como o gigante comedor de gente, o Piaimã da mitologia taulipangue.





A obra foi escrita em seis dias, com o autor deitado em uma rede, trocando idéias com crianças. Foi assim que ele descortinou o caráter de seu povo, pois a luta pela reconquista da muiraquitã revela a personalidade brasileira, o jeito gingado de buscar soluções, enfrentar os problemas, o ócio criativo. Em um prefácio preparado por Mário de Andrade e só recentemente publicado, o autor revela:

“O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora, depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado isso antes de mim, porém a minha conclusão é uma novidade para mim porque tirada da minha experiência pessoal. E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não; em vez entendo a realidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes, na ação exterior, na língua, na História, na andadura tanto no bem como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional.”



A lógica da história de Macunaíma é não ter lógica, uma contradição de si mesma, e a cada página vão sendo reveladas as cores do Brasil, o povo, a alma aventureira (que alguns anos depois foi analisada pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil), cheia de brincadeiras sem culpas (Macunaíma adorava brincar, principalmente com Ci, mãe do mato, mas não só com ela). E essa identidade procurada em Macunaíma nem era exatamente brasileira: “Sou americano, meu lugar é na América. A civilização européia decerto esculhamba a inteireza de nosso caráter”.

Após seis anos sem falar, Macunaíma proferiu sua primeira frase: “Ai! que preguiça!...” Em uma só frase ele uniu duas culturas, dois idiomas, formando uma onomatopéia e um pleonasmo. Ai, em tupi, significa um comportamento e também um animal: o bicho preguiça, o mamífero de movimentos extremamente lentos que tanto surpreendeu os primeiros europeus.

A onomatopéia “Ai!” também lembra o som natural que fazemos ao despertar, estirando músculos e membros de modo preguiçoso, preparando-os para mais um dia. Quando falamos ou lemos “Ai”, pensamos em preguiça; repetindo as mesmas palavras em idiomas distintos, cria-se um pleonasmo que confere mais vigor e clareza à expressão.


Monteiro Lobato também tratou do tema, mas, neste caso, desdenhando Jeca Tatu, o caipira indolente, que “de qualquer jeito se vive”, atormentado por bichos-do-pé, devorado por vermes. Anos depois, o próprio Lobato reviu sua opinião, mas esses registros literários, em forma de sátira ou de condenação, expressam uma opinião corrente, um imaginário social presente até os dias de hoje. De um lado, a preguiça como fraqueza da alma, fonte de males; de outro, a preguiça transformadora, o ócio criativo do brasileiro.







Esse imaginário começou a ser construído através das narrativas do início da dominação portuguesa no Brasil. Segundo alguns relatos, os colonizadores encontraram por aqui uma sociedade de recusa do trabalho, que provocava um misto de admiração e escândalo pela facilidade com que obtinha o seu sustento e a nudez desavergonhada de índios preguiçosos e saudáveis, e robustos, e felizes.... Talvez por isso os colonizadores tenham se dedicado com tanto afinco à evangelização do gentio: caçando-os, escravizando-os, livrando-os do reino do pecado, oferecendo-lhes o mundo do trabalho.

Com o tempo, a imagem negativa da preguiça se transferiu do indígena para o negro, principalmente após a abolição da escravatura. Pouco importava se o trabalho escravo havia sustentado a economia da Colônia e do Império, pois os bandos de negros sem trabalho, expulsos das fazendas de café, vagando pelas estradas, habitando os bairros pobres dos extremos das cidades, vivendo de biscates, inventando a capoeira, e a feijoada, e o samba, provocavam medo; eram associados à vagabundagem e ao perigo.

No início do século XX, São Paulo passou por uma contínua explosão demográfica, tendo aumentado sua população em 270% no curto período de dez anos, entre 1890 (65 mil habitantes) e 1900 (240 mil habitantes). Nos vinte anos seguintes, a população mais que dobrou (580 mil habitantes). Era gente nova chegando todos os dias, principalmente imigrantes, que compunham mais da metade da população de São Paulo e que se somariam à gente do interior, caipiras e ex-escravos. Hoje o paulistano médio associa criminalidade e vagabundagem à onda migratória, aos nordestinos e negros, que vieram de algum lugar, mas, certamente, “de fora” de São Paulo (pelo menos o pensamento médio gostaria que assim fosse).


Tudo em pouco tempo. Cinqüenta anos antes, os proletários brancos nem viviam neste continente. Quando aqui chegaram (depois de uma travessia de mais de um mês no mar, em absoluto desconforto), foram primeiro para as fazendas de café; percebendo, porém, que não valia a pena se esforçar em latifúndios ainda maiores que os da velha Europa, deixaram a vida no interior e ganharam a cidade. A expressão “Hoje é dia de branco!”, que se refere aos dias de trabalho, é resultante da construção desta auto-imagem de trabalhadores dedicados.









Com o tempo, ocorreu uma aproximação entre o negro ex-escravo, os caipiras do interior e o imigrante pobre, aqueles que não conseguiram realizar o seu “dia de branco”. Esta aproximação foi facilitada pelas condições sociais e pela própria configuração geográfica. Da ajuda recíproca na adversidade ao encontro nas festas, essa gente se entrelaçou no samba e no futebol jogado na várzea dos rios (origem de times como Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Portuguesa). Observando esse encontro de “preguiçosos” estava Mário de Andrade, nascido e criado na “barra funda” do Rio Tietê.

A epopéia de Macunaíma se insere num momento em que São Paulo estava construindo a imagem de “locomotiva do Brasil”, cidade que exalta o trabalho em hino (“São Paulo que amanhece trabalhando...”). A narrativa de Mário de Andrade envolve este embate entre preguiça e trabalho, alienação e emancipação, e nela o autor ressalta um ponto de vista diferente da visão criminalizadora da preguiça – que condena o ócio como desvio do espírito e até mesmo o lazer um pouco mais livre, aquele que sai do controle –, que estava inserida no contexto higienista da época.







Para Mário de Andrade/Macunaíma, a preguiça foi o símbolo da mais perfeita consciência de movimento e sabedoria, e por isso o escolheu para petrificar a cidade, transformando São Paulo em totem de um bicho preguiça.

Cabe destacar que a idéia de preguiça em Mário de Andrade é anterior ao livro Macunaíma, e foi sedimentada em um artigo publicado em 3 de setembro de 1918 no jornal A Gazeta. Podemos perceber que vários conceitos já estavam perfeitamente elaborados nesse artigo, intitulado “A Divina Preguiça”.

Ainda jovem, Mário de Andrade percebeu a preguiça em seu outro significado. “A Divina Preguiça” apontou a necessidade de rever conceitos e processos acerca do desencadeamento da civilização diante do impacto da guerra em um processo dantesco de matança e barbárie. Assim como ele, outros autores escreveram a respeito de um novo significado para a preguiça, como o manifesto do genro de Karl Marx, Paul Lafargue, em O Direito à Preguiça, e O Elogio ao Ócio, de Bertrand Russell.







Em “A Divina Preguiça”, Mário de Andrade deixou claro que a humanidade nem sempre teve a mesma opinião sobre o assunto, e demonstrou que o seu significado mudou de acordo com o tempo, as necessidades e os valores decorrentes de cada momento histórico. Neste artigo, vai se consolidando a convicção da importância de travar um embate com essa noção moralizadora e controladora do tempo (que deveria ser) livre das pessoas. O ócio é apresentado em seu contrário, como um elemento libertário e de recusa da dominação em que o riso, a brincadeira e o lazer são entendidos como fundamentais para a emancipação humana. Seu artigo contesta outro, de um famoso articulista e acadêmico brasileiro, Austregésilo de Athaíde, que se refere à preguiça como sendo uma patologia a ser combatida, curada.

Mário de Andrade escreveu Macunaíma dez anos depois, aprofundando conceitos e apresentando a preguiça como uma das matrizes do cárater nacional, uma preguiça criativa, gingada e inovadora.

Como constatou o sociólogo francês Roger Bastide, um dos fundadores da Universidade de São Paulo, “o sociólogo que quiser compreender o Brasil não raro precisa transformar-se em poeta”. Mário de Andrade fez o contrário; foi o poeta que se travestiu de sociólogo. E o fez com a maestria de um artista e mágico que, a partir do lúdico, produz efeitos emocionais e de análise; um mágico da interpretação do Brasil. “Não se pode encontrar um livro mais brasileiro que Macunaíma”, disse Bastide, identificando na obra “uma selvageria lírica atropelando com seu riso uma civilização de importação” e comparando-a a Gargântua, de François Rabelais, na construção de um herói popular com origem no folclore e que dá uma nova dimensão aos costumes, jeitos e falares do povo. E foi assim mesmo que Mário de Andrade procedeu, unindo campos geralmente separados, a magia e a razão.

As histórias que nosso herói Macunaíma descobriu, em sua original falta de índole, foram compondo um novo caráter de brasileiro e, quem sabe, o de sul-americano. Um cadinho de cada lugar, um pouquinho de cada pessoa, de cada tempo. Em sua aventura, o herói conheceu pessoas extraordinárias, mergulhando em um mundo de magia e mistérios. Sendo Macunaíma um herói preguiçoso, no fim do seu tempo de aventuras virou estrela, pois no céu reencontraria a felicidade e uma vida de lazer. E Ci, sua amada.







Com o olhar de poeta, Mário de Andrade nos demonstrou a ganância insaciável de Piaimã e como ele tira o sangue, o lazer e os sonhos de nossa gente. Macunaíma, com a astúcia da preguiça, venceu seus inimigos, enfrentou Piaimã e também o derrotou; uniu-se aos seus irmãos, atravessou o Brasil, lançou mão de armas que aprendera a usar na infância. Brincou e teve coragem. Não se deixou enganar e seguiu em frente até voltar a ser estrela, uma estrela de brilho inútil que nos mostrou que o ócio não é somente não fazer nada; é um meio de emancipação e de livre pensamento.

Macunaíma e seus amigos empregaram o verbo fazer em todos os momentos em que foi necessário tomar uma decisão: “Sim, Curupira fez”; “Sim, cotia fez”; “Essa eu caço! Ele fez”; “Ai! Maanape fez”; “Ui! Que o herói fez”; “Sai azar! O rapaz fez”; “Arre que posso te comer, fez”. São construções freqüentes na rapsódia de Macunaíma, o herói preguiçoso, que não fugiu à luta e fez. Em contrapartida, nós, os práticos e utilitários, vivemos adiando nossa felicidade. Conjugamos o verbo no gerúndio, em um tempo que nunca termina. Vamos “fazendo” e não concluímos. Vamos “transferindo” e não alcançamos. Vamos “governando” e não resolvemos. Mas até os nossos sonhos vão se transformando em coisas, em mercadoria. E o lucro vai crescendo, acumulando-se nas mãos de poucos.

Se não quisermos o destino de ser alimento para o gigante comedor de gente, melhor romper o cerco e conquistar algum tempo para nós mesmos. E começar bem cedo, encontrando tempo para um lazer diferente que nos dê coragem para enfrentar Piaimã. A fenda, a fresta, é bem pequena, e se quisermos aproveitá-la, terá que ser em nosso tempo livre, no tempo que pode sair do controle. Mas antes de começar, melhor estirar os músculos, expandir a mente e, bem devagar, alongar os braços e dizer:
- Ai! Que preguiça!...





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Celio Turino é mestre em História pela Unicamp e especialista em administração cultural pela PUC-SP. É secretário de Programas e Projetos do Ministério da Cultura. Autor de Na trilha de Macunaíma – ócio e trabalho na cidade. Ed. Senac.)

Revista de Historia da Biblioteca Nacional 





(Por preguiça, manteve-se a ortografia original).