domingo, 28 de fevereiro de 2010

EM DEFESA DA PREGUIÇA, DE ROBERTO GOMES



Mário de Andrade tinha 25 anos quando escreveu um texto de três páginas que publicou no jornal paulistano A Gazeta no dia 3 de setembro de 1918. O título: “A Divina Pre­­guiça”. É um texto pouco citado e, desconfio, pouco lido. O que é curioso, já que a exclamação de Macunaíma – “Ai, que preguiça!” – é repetida como um bordão consagrado sempre que se fala a respeito do herói sem ne­­nhum caráter. O romance Macu­naíma foi publicado em 1928, portanto Mário teve pelo menos dez anos para virar e revirar em sua mente as ideias que lançou no artigo em que sintetiza uma crítica ao trabalho, um elogio do ócio e uma divinização da preguiça. Mas não se trata de qualquer preguiça, nem de qualquer ócio ou de qualquer trabalho.

A data em que o artigo foi publicado é importante, pois na Europa a Primeira Guerra Mun­­dial ainda rugia – terminaria dentro de três meses. O horizonte a partir do qual Mário enfoca a questão são os descaminhos que levaram à guerra e os princípios segundo os quais se pensa a civilização. Por isso o artigo inicia lembrando a oposição que habitualmente é feita entre momentos “de progresso, de estacionamento e de eras em que a civilização volta atrás”, equívoco que Mário combate. “Na passagem das civilizações” – diz ele – “como na própria vida, tudo é marchar”.

Um dos sintomas desses descaminhos, anteriores “ao famigerado agosto de 1914”, ele vai encontrar, num corte cirúrgico, nas práticas cientificistas da época. Ou, nas suas palavras: “a propensão que tinham os cientistas de explicar as faltas e os vícios dos homens por meio de doenças e de atavismo”. Entre tais faltas e vícios destaca-se a preguiça, espécie de avesso de um mundo em progresso e movimento constante, com o acúmulo de riquezas e de novas tecnologias de dominação do homem e do mundo. O projeto capitalista precisava de ação e produção – motivo pelo qual a preguiça deveria ser acusada de vício, senão de crime. E os “cientistas” – mais precisamente os psiquiatras – se prestaram de imediato a esse papel.

Mário, “folheando as eruditas páginas de Austregésilo sobre a ‘Preguiça patológica’”, ri dos cientistas. Lembra que a loucura, ao longo da história, teria sido para alguns um dom divino e para outros um pecado mortal; agora, estaria acuada, “reduzida a um morbo de nova espécie!”
A preguiça deixa de ter a nobreza vinda dos deuses e o peso trágico derivado das misérias humanas. Perdeu a grandeza. Já não seria possível agradecer seu usufruto aos deuses ou penitenciar-se nos confessionários. “Sem regalo nem culpa, resumia-se a uma doença!” Os preguiçosos eram doentes sem grandeza e nada se esperava deles ou da preguiça. Toda “mandranice” se reduzia ao “mesmo morbo”.

É interessante como, no início do século, Mário desenvolve uma análise que só será pensada plenamente após a década de 1960, quando se tomará consciência dos mecanismos através dos quais o que ameaça ou contradiz o projeto capitalista deverá ser apontado como entrave à disciplina dos corpos. Isso só se ouvirá com Marcuse, Foucault etc. Há antecedentes, é claro. Um deles, O Direito à Preguiça, publicado em 1848, de Paul Lafargue, genro gaiato de Karl Marx. E vale lembrar que, em 1882, Machado de Assis, no notável O Alienista, havia apontado o exercício de poder que parece umbilicalmente colado ao discurso científico. A fabricação do louco, em Machado de Assis, passa pelo exercício de poder do psiquiatra positivista.

Mário e Machado estão, nesse caso, décadas antes de seu tempo.

Assim, reduzida a uma doença, a preguiça deve ser calada. E curada, talvez em estações de águas. Depois dessa terapia, ironiza Mário: “a humanidade voltaria ao labutar diuturno da vida!”.

Mário ressalta que em diferentes momentos da história a preguiça foi vista de forma diversa. Na Grécia, por exemplo, e em Roma. O ócio era aí respeitado, pois se sabia que era a partir dele que os poetas e filósofos criavam literatura e pensamento. O conhecimento, seja na geometria ou na engenharia, precisava não apenas de mão de obra e de muito suor, mas também de quem pudesse resolver questões aparentemente desvinculadas de qualquer aplicação prática. Como se sabe, os gregos tinham grande desprezo pelos trabalhos manuais, o que lhes permitia uma sociedade escravocrata. E sabiam que, ao se tornarem livres do trabalho servil, os homens se tornaram capazes de criar artes plásticas ou literárias, ciência e conhecimento. Aristóteles e Platão assinalam com clareza o papel do ócio na criação artística e filosófica. Mário pensa da mesma forma ao dizer que a arte “nasceu porventura dum bocejo sublime” e o “belo e a arte são a descendência que perpetua e enaltece o ócio”.

Com o cristianismo – que, contrariamente ao escravismo grego e romano, postula a igualdade teórica entre todos os homens, filhos e imagem de um mesmo Deus – a preguiça vai sofrer um deslocamento. Foi transformada em pecado. “Mas, diz Mário, já não é a mesma preguiça”. Ela é um vício quando se torna enfraquecimento, tibieza, o abandono das “lutas e das porfias”. Essa “inércia lânguida” é a porta aberta aos pecados. É isso que o cristianismo combate, mas devemos lembrar que, no isolamento dos mosteiros, monges se dedicam a longos momentos de reflexão, produzindo textos religiosos, filosóficos, copiando e ilustrando textos, reinventando a pintura, o conhecimento, até alcançar os patamares a que chegou a filosofia e a pintura no século 13.

A necessidade de se sentir livre do trabalho servil é essencial, sabem os medievais, para a geração do conhecimento, tanto que esse irá renascer quando o fundamentalismo dos primeiros séculos se abrandar. O Renas­­cimento recuperará o ideal clássico grego ao final desse longo processo.

Mário, diante dos desastres da guerra – movida por ambição, ganância e desejo de poder – se recusa a abrir mão da preguiça. “Mil vezes não!”, exclama ele. Justamente nesse momento em que se anseia pelo seu fim, poderá ocorrer a transformação civilizatória “para que o idealismo floresça e as ilusões fecundem”. Seria o “Sésamo, abre-te” do qual ele fala.

Portanto, nada de dar ouvidos aos “psiquiatras” que “querem trazer à preguiça mais essa qualificação de doentia, redimindo os ócios culposos, vulgarizando os ócios salutares! Revoltemo-nos! A preguiça não pode ser reduzida a uma doença!”

A preguiça tem um papel fundamental a desempenhar, portanto. A divina preguiça, criadora, bocejo sublime, será a parteira dos novos tempos.

No entanto, se Mário escrevesse, não em 27 de agosto de 1918, mas nessa morna quinta-feira de 19 de novembro de 2009, penso que ele teria um problema a mais.

Hoje circula muita desconversa a respeito do assunto. O chamado mundo corporativo – que se apropriou de algumas categorias com as quais a filosofia pensou a questão do trabalho e do ócio – vulgariza um discurso que, desinteressado do verdadeiro ócio e da divina preguiça, busca transformar trabalhadores em criaturas maleáveis, acomodadas às felicidades do consumo, ao projeto de ganhar mais, ter prestígio e sucesso. Enfim, ócio incorporado à produção.

Trata-se de uma perversão da divina preguiça. Imagino que Mário de Andrade reclamaria. É preciso estar alerta: o ócio e a preguiça têm um valor absoluto, caso contrário se perdem como instrumento de manipulação nas mãos de quem manda.

A divina preguiça injeta, nas ações humanas, um antídoto contra toda servidão ao trabalho. É o espaço aberto à criatividade, à liberdade, capaz de dar aos homens a sensação de plenitude que só o reencontro de si mesmo pode proporcionar. Sem lucros e sem utilidades oportunistas – apenas pela realização do que há de melhor no ser humano. Pouco importa que seja exercida no domínio da técnica, da ciência, das artes ou do conhecimento de si mesmo, aquilo que os gregos chamavam de autonomia.

Eis onde nos levam as intuições geniais que Mário de Andrade lançou em seu artigo de 1918.
Agora, se alguém ainda dirige à preguiça ou ao ócio um olhar de desconfiança, lembro mais um paradoxo: não é fácil encontrarmos quem tenha trabalhado mais do que Mário de Andrade. Ou quem trabalhou mais do que Picasso ou Pasteur.

Mas é um trabalho de outra ordem – erotizado, como dizia Marcuse, ou, “no convívio da divina Preguiça”, como escreveu Mário.


* Roberto Gomes é colunista da Gazeta do Povo e autor de vários livros, entre eles, o romance Júlia (Editora Leitura).

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O “GURU” DO ÓCIO

Não gosto da palavra “guru”. E odeio todos os gurus. Mas estou com preguiça demais para procurar outro termo. Então, vai esse mesmo.
O “guru” do ócio é DOMENICO DE MASI. O italiano sabe do que está falando. Tem idéias muito interessantes. Então, é melhor tirar a bunda da cadeira ou a cabeça do travesseiro e, de vez em quando, procurar algo para fazer. E o melhor a fazer é comprar (de preferência pela internet, que dá menos trabalho) o livro do Domenico, voltar a bunda para a cadeira (espreguiçadeira, de preferência) ou a cabeça pra o travesseiro (melhor se for numa rede) e ler este livro:

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A DIVINA PREGUIÇA – II



Segue a segunda e última parte do artigo do Pedro Bondaczuk:

O artigo “A divina preguiça” foi publicado por Mário de Andrade no jornal “A Gazeta” de São Paulo, da Fundação Casper Líbero, em 3 de setembro de 1918. Antecede, portanto, ao livro “Macunaíma”, escrito dez anos depois. O texto jornalístico e o romance, portanto, não têm nenhuma relação, a não ser certa identidade temática.

Este “herói sem caráter”, aliás, é utilizado, por muitos, como uma espécie de símbolo do brasileiro (ou seu estereótipo, o que é mais correto afirmar). Ele sim era dotado daquele tipo de preguiça condenável, que a palavra, sempre que mencionada, traz, de imediato, à mente. Não é ele, portanto, o que recomendo.

Em certo trecho da referida crônica, o escritor paulistano chega a sugerir: “A arte nasceu porventura de um bocejo sublime, assim como o sentimento do belo deve ter surgido duma contemplação da natureza”. E respondam-me, com sinceridade: “Quem nunca teve esse tipo de ‘preguiça’”?!

Discordo, todavia, de Paulo Prado ao caracterizar o brasileiro como Macunaíma em potencial. Num texto seu, muito conhecido, dá a entender que os males do Brasil seriam: “um patriotismo fofo, leis com parolas, preguiça, ferrugem, formiga e mofo”. Essas características, convenhamos, podem ser encontradas em pessoas de qualquer país do mundo. Não têm nada a ver com nacionalidade.O historiador, e secretário do Ministério de Cultura, Célio Turino, escreveu um excelente texto a propósito do artigo de Mário de Andrade, intitulado “O herói sem nenhum trabalho”, publicado em 1° de fevereiro de 2007, cuja leitura recomendo a quem puder ter acesso a ele. É muito esclarecedor.

Já Eneida Maria de Souza observa, em “A preguiça - mal de origem”, que o escritor paulistano (um dos maiores intelectuais do seu tempo) entendia que a condição de ociosidade era válida, sobretudo, ao gesto de meditação, de descontração do intelecto, “a uma certa maneira de filosofar e de exercitar um saber paciente, calmo, desprovido do caráter utilitário de outro tipo de trabalho”.

Em carta escrita ao seu tio Pio, datada de 1933, Mário de Andrade confessou: “Tenho o dom espantoso e bem raro de me considerar feliz (...) A paz dos justos, a serenidade dos experientes, a generosidade dos superiores e aquela concepção de vida que não de alegria se alimenta, mas de amorosa contemplação e paciência, que por isso mesmo não é nem alegre, nem triste, mas é maravilhosamente sábia”.

Esse ócio digno e sereno é a coroação da utopia dos que idealizam a sociedade perfeita, igualitária e justa, em que ninguém precise sequer trabalhar, por todos terem garantida a satisfação das suas necessidades vitais. Na concepção desses delirantes sonhadores, o homem terá todo o tempo do mundo para dedicar-se, apenas, às artes, à filosofia e à expansão do que tem de mais nobre: sua capacidade de pensar e, sobretudo, de imaginar.

O que Mário de Andrade sugere, portanto, não é a preguiça, no sentido usual do termo. Não é a inércia, a acomodação ou a omissão. Longe disso. É, sim, um tempo benigno de reflexão, sem nenhum outro tipo de preocupação para atrapalhar e, sobretudo, de contemplação. Esse tipo de “divina preguiça” é o que também mais quero, sem dúvida. Quem não quer?

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A DIVINA PREGUIÇA – I



Este o título de um artigo de Pedro J. Bondaczuk, do qual transcrevo os primeiros parágrafos:

“A palavra preguiça tem, com razão, conotação bastante negativa. Caracteriza a indolência, a falta de vontade de trabalhar, de agir e até de pensar. Em última análise, rotula o máximo da omissão. O sujeito preguiçoso quer tudo pronto ao seu dispor, sem se dispor a fazer coisíssima nenhuma, se possível nem se mover para comer, exigindo que outros lhe ponham comida na boca.

Fosse o mundo depender de pessoas assim, estaríamos perdidos. Há, porém, um sentido nobre para o termo, que raramente alguém utiliza, por causa do seu significado mais popular e pejorativo. É aquele estado de descontração total, de absoluto relaxamento, ideal para nos reparar as forças físicas e/ou mentais. É o que os romanos chamavam de “ócio com dignidade”.

É nesse estado que surgem algumas idéias, impossíveis de nos visitar quando estamos tensos, ativos e/ou excitados. Foi a ele que Mário de Andrade dedicou instigante texto, que denominou de “A divina preguiça”. Ademais, outros tantos escritores, como Paul Laforgue (genro de Karl Marx) e Bertrand Russell, também escreveram a respeito e traçaram essa distinção.”

(http://pedrobondaczuk.blogspot.com/2009/04/divina-preguica.html)

Como veem, preguiça também é assunto de filósofos, poetas e escritores. Por isso, não se envergonhem de curti-la, e bem, pelo menos de vez em quando. No próximo post, publico o resto do artigo...

Bateu uma preguiça!

domingo, 7 de fevereiro de 2010

DOMINGO É DIA...



“Domingo é dia
de pescaria,
e lá vou eu
de caniço e samburá...”

Assim começava uma marchinha antiga de carnaval.


Acho que pescaria dá muito trabalho para se fazer num domingo. Então, melhor que pescaria, domingo é dia mesmo é de uma boa preguiça.


(Ilustração: foto da internet, sem crédito)