quinta-feira, 3 de março de 2016

A PREGUIÇA, POR ALDOUS HUXLEY







No livro CONTRAPONTO, o casal Mark e Mary Rampion são um exemplo perfeito do contraste entre pobreza e riqueza. Ele, pobretão e culto; ela, nobre, rica e fútil. Casam-se. E passam por todas as etapas de um relacionamento: paixão, amor, fastio etc. No começo, como sempre, tudo são flores. É desse momento que destacamos o seguinte trecho:






Para Rampion havia também uma espécie de obrigação moral de viver a vida dos pobres. Mesmo quando ele já estava tendo um rendimento perfeitamente razoável, o casal mantinha apenas uma criada e continuava a fazer sozinho uma grande parte do trabalho doméstico. [...] Viver como rico, numa confortável abstração dos cuidados materiais, seria – sentia ele – uma espécie de traição à sua classe, à sua própria gente.







[...] Havia ocasiões em que Mark odiava aquela obrigação moral, porque sentia que ela o estava compelindo a fazer coisas tolas e ridículas; e, odiando-a, tentava revoltar-se contra ela. Como ficara absurdamente escandalizado, por exemplo, diante do hábito que Mary tinha de ficar na cama de manhã! Quando ela sentia preguiça, não se levantava e acabou-se. A primeira vez que isso aconteceu, Rampion ficou verdadeiramente angustiado.







- Mas tu não podes ficar na cama toda a manhã – protestara ele.
- Por que não?
- Por que não? Porque não podes.
- Mas eu posso – disse Mary calmamente. – Posso e fico.







Achou aquilo chocante. Sem motivo, como percebeu ele mesmo ao tentar analisar os próprios sentimentos. Mas, apesar de tudo, ficou escandalizado. Ficou escandalizado porque ele sempre se levantara cedo, porque toda a sua gente tinha sido obrigada a deixar sempre a cama cedo. Ficou escandalizado porque não se devia ficar na cama enquanto os outros estavam de pé a trabalhar. Levantar tarde era, de certo modo, uma afronta. E, no entanto, o fato de uma pessoa levantar cedo sem necessidade não auxiliava em nada as outras que levantavam cedo por obrigação. Levantar quando nada nos obriga a isso é simplesmente um tributo de respeito, como descobrir-se numa igreja. E, ao mesmo tempo, é um sacrifício propiciatório para apaziguar a própria consciência.







“Não se deve pensar assim”, refletia Mark Rampion.








[...] E lembrou-se deste verso de Walt Whitman sobre os animais: “Eles não padecem nem se lamentam por causa de sua condição. Não passam as noites em claro, chorando seus pecados”. Mary era assim; era bom ser assim. Ser um perfeito animal e ao mesmo tempo uma criatura humana perfeita, eis o ideal... Apesar de tudo, Mark ficava escandalizado quando Mary não se levantava de manhã. Procurava não ficar, mas ficava. Rebelando-se, permanecia algumas vezes na cama também, até meio dia; por princípio. Era seu dever não ser um bárbaro da consciência. Mas foi preciso muito tempo para que ele pudesse gozar verdadeiramente da sua preguiça.





(CONTRAPONTO; Aldous Huxley 
– tradução de Érico Veríssimo e Leonel Vallandro)