sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O ELOGIO DO LAZER, POR BERTRAND RUSSEL





“Quando uma pessoa, que já possui o bastante para viver, resolve ocupar-se em uma atividade social, a de professor ou a de datilógrafo, por exemplo, diz-se que essa pessoa - seja homem ou mulher - está tirando o pão da boca dos outros, e, por conseguinte, procedendo mal. Se este argumento fosse conclusivo, bastaria simplesmente que todos nós fossemos indolentes e assim teríamos todos as bocas cheias de pão. Mas as pessoas que dizem tais coisas se esquecem de que, habitualmente, o homem gasta os proventos de seu trabalho, e, assim o fazendo, está empregando esse numerário.




Gastando, pois, sua renda, o homem põe na boca de outros, quando lhas tira, ao ganhá-la. Por este ponto de vista, o verdadeiro vilão é o homem parcimonioso. Se ele, simplesmente, puser suas economias num pé-de-meia, como o proverbial camponês francês, é evidente que não está dando o devido emprego a seu dinheiro. Mas se investe suas economias, o assunto é menos evidente e diferentes casos podem apresentar-se.


Uma das maneiras mais comuns de empregar economias é emprestá-las ao governo. Em virtude desse fato, grande verba dos orçamentos da maioria das administrações públicas de países civilizados é empregada no pagamento do após-guerra ou na preparação de guerras futuras. O homem que empresta dinheiro ao governo encontra-se na mesma posição do homem mau de Shakespeare, que assalariava assassinos. O resultado líquido que tem o homem de hábitos econômicos é fazer aumentar as forças armadas do Estado ao qual ele empresta suas economias. Evidentemente, melhor seria se ele mesmo gastasse o seu dinheiro, ainda que o fizesse na bebida ou no jogo.”





“Desejo dizer, com toda seriedade, que grande mal está sendo causado ao mundo moderno, com a crença na virtuosidade do trabalho e com a de que o caminho para a felicidade e prosperidade consiste na sua diminuição organizada.”
“Antes de tudo, o que é o trabalho? Há trabalho de duas espécies: a primeira consiste em alterar a posição da matéria na terra, ou próxima à sua superfície, relativamente à outra matéria; a segunda, em dizer aos outros que façam assim. A primeira espécie é desagradável e mal paga; a segunda, agradável e bem remunerada. Esta última é capaz de ilimitada extensão - não há somente aqueles que dão ordens, mas os que dão conselhos sobre as coisas que deveriam ser ordenadas. Usualmente, as corporações organizadas dão duas espécies opostas de conselhos - é o que se chama política. A habilidade necessária para essa espécie de trabalho não é o conhecimento dos assuntos a respeito dos quais são dados os conselhos, mas a arte de falar e de escrever persuasivamente: isto é, a arte da propaganda.


Na Europa, há uma terceira classe de homens, mais respeitada que qualquer uma dessas de trabalhadores, o que não acontece na América. Há os homens que, pelo direito de propriedade, podem obrigar os outros a pagar pelo privilégio de poderem viver e trabalhar em suas terras. Esses proprietários são, em geral, indolentes, e, por isso, é de se esperar que sejam louvados. Infelizmente, sua ociosidade só pode tornar-se realidade pelo trabalho dos outros. Na verdade, seu desejo de ter uma confortável ociosidade é, historicamente, a fonte de todo o Evangelho do Trabalho. O que nunca desejaram é que outros pudessem seguir seu exemplo.”





“Do início da Civilização até a Revolução Industrial, por via de regra, um homem podia produzir, pelo trabalho árduo, pouco mais do que era necessário para sua subsistência e de sua família, ainda que a mulher trabalhasse, pelo menos, tão intensamente quanto ele, e os filhos o ajudassem com seu trabalho, logo que tivessem a idade suficiente para fazê-lo. O pequeno excedente sobre o estritamente necessário não era deixado para aqueles que o produziam, mas usurpado pelos guerreiros e pelos sacerdotes de então. Em época de escassez, não havia excedente. Contudo, os sacerdotes e guerreiros retinham tanto como nos tempos de abundância, resultando, por esse motivo, que os trabalhadores passavam fome. (...)
É evidente que, nas primitivas comunidades, os camponeses se deixados à vontade, não se teriam privado do escasso excedente que sustentava os sacerdotes e os guerreiros, mas teriam ou produzido menos ou consumido mais. A princípio, a força bruta compeliu-os a produzir e a se desfazer do excedente. Todavia, pouco a pouco, foi possível induzir muitos deles a aceitarem uma ética, segundo a qual era de seu dever trabalhar arduamente, se bem que uma parte de seu trabalho viesse a manter outros na ociosidade.”


“Até nossos dias 99% dos assalariados ingleses ficariam verdadeiramente chocados se fosse proposto que o rei não tivesse renda maior que a de um trabalhador qualquer. A concepção do dever, historicamente falando, tem sido um meio usado pelos detentores do poder para induzirem os outros a viverem mais para os interesses dos patrões que para os seus próprios. Naturalmente, os que estão com o poder ocultam esse fato, fazendo acreditar que os seus interesses são idênticos aos maiores interesses da humanidade.”






“A técnica moderna tornou o lazer possível, a fim de diminuir consideravelmente a quantidade de trabalho exigida para assegurar a subsistência de todos. Isso se tornou evidente durante a guerra. Naquela época, todos os homens das forças armadas, todos os homens e mulheres ocupados na produção de munições, nos serviços de espionagem, na propaganda de guerra ou nos departamentos oficiais relacionados com a guerra, foram retirados de outras ocupações produtivas. A despeito disso, o nível de bem-estar físico entre os assalariados inexperientes do lado dos Aliados era mais elevado do que antes. A significação desse fato acha-se oculta no princípio financeiro. Tomar emprestado é alimentar o presente com o futuro. Mas teria sido naturalmente impossível - um homem não pode comer um pão que ainda não existe. A guerra demonstrou, de modo explícito, que, pela organização científica da produção, é possível manter as populações modernas com regular conforto, numa pequena parte do âmbito de trabalho do mundo moderno. Se, no fim da guerra, a organização científica que foi criada para libertar o homem do trabalhado relacionado com a luta e as munições tivesse sido conservada e as horas de trabalho diminuídas para quatro, tudo estaria muito bem. Mas, em lugar disso, o velho caso foi reestabelecido e aqueles cujo trabalho era reclamado tiveram que trabalhar longas horas e o resto morrer de fome, por falta de emprego. Porque o trabalho é um dever, e um homem não poderia receber salário na proporção do que produzia, mas na proporção de seu valor, demonstrado no trabalho.”


“Se o trabalhador comum trabalhasse quatro horas por dia, isto seria o suficiente para todos, e não haveria falta de emprego, admitindo-se uma dose muito moderada de sensata organização. Essa ideia choca os endinheirados porque eles estão certos de que o pobre não saberia como empregar tanto “lazer”. Nos Estados Unidos, os homens, muitas vezes, trabalham longas horas mesmo quando já são endinheirados.”





“Deve-se admitir que o uso acertado do “lazer” é um produto da civilização e da educação. Um homem que trabalhou longas horas durante toda a vida, ficará enfadado se, de repente, ficar sem ter o que fazer. Mas, sem um razoável descanso, o homem sentir-se-á privado de muitas das melhores coisas. Nenhum motivo existe para que a maioria do povo deva sofrer dessa privação. Somente um ascetismo insensato nos faz continuar a insistir em que se deva trabalhar, excessivamente, agora que essa necessidade já não existe.”


“A atitude das classes dirigentes - especialmente a das que realizam a propaganda educacional - no que diz respeito à dignidade do trabalho, é quase exatamente a que as classes dirigentes do mundo têm sempre tido para com o que era chamado o “pobre honesto”. Diligência, sobriedade, boa vontade para trabalhar longas horas, a fim de obter vantagens remotas, até mesmo a submissão à autoridade, tudo isso reaparece.”





“Pouco nos importamos com a justiça econômica, de modo que uma grande porcentagem de lucro da produção total, se canaliza para uma parte mínima da população, dentro da qual há muitos que não executam trabalho de espécie alguma. Em vista da ausência de qualquer controle central para a produção, fabricamos um monte de coisas que não são necessárias. Podemos conservar uma grande porcentagem da população operária na ociosidade, porque nos é dado dispensar o seu trabalho, fazendo com que os outros trabalhem excessivamente. Quando todos esses métodos se tornarem inadequados, o resultado será a guerra. Induzimos um certo número de pessoas a fabricarem altos explosivos e outros a fazê-los explodirem, como se fossem crianças que tivessem acabado de descobrir fogos de artifício. Por uma combinação de todos esses inventos, fazemos o possível, ainda que com dificuldade, para conservar viva a noção de que uma grande parte de árduo trabalho manual deve ser o quinhão do homem médio.”


“A solução nacional, logo que for possível atender as necessidades e o conforto de todos, seria reduzir, gradualmente, as horas de trabalho, permitindo que o voto popular decidisse qual das duas coisas seria prefirível - mais “lazer” ou mais “mercadorias”. Mas, tendo sido ensinado a suprema virtude do trabalho penoso, é difícil ver como as autoridades possam almejar um paraíso no qual haja mais lazer e menos trabalho. Parece mais provável que eles possam encontrar novos planos, segundo os quais a ociosidade presente deva ser sacrificada em benefício da futura produtividade.”







“Se perguntarmos ao trabalhador o que pensa a respeito da melhor parte de sua vida, provavelmente não responderá: “gosto do trabalho manual porque estou cumprindo a mais nobre tarefa do homem e gosto de pensar como o homem é capaz de transformar este planeta. É verdade que meu corpo exige períodos de repouso e que tenha de fazê-lo da melhor maneira possível, mas nunca me sinto tão feliz, como quando o dia amanhece, e posso voltar ao trabalho do qual brota todo o meu contentamento”. Jamais ouvi um operário expressar-se desse modo. Eles consideram o trabalho como deveria ser considerado, isto é, como um meio de subsistência e é das suas horas de lazer que eles tiram a felicidade - seja ela qual for - que possam gozar.”


“O homem moderno julga que tudo deve ser feito por causa de alguém mais e nunca tão somente em seu próprio interesse.”





“O indivíduo em nossa sociedade trabalha para ter lucro. Mas o fim social de seu trabalho está no consumo do que ele produz. É este divórcio entre o indivíduo e o objetivo social da produção que torna difícil, para os homens, pensarem com clareza num mundo onde o lucro é o incentivo da indústria. Pensamos muitíssimo na produção e pouquíssimo no consumo. Um dos resultados é que emprestamos pouca importância ao gozo e à felicidade e não julgamos a produção pelo prazer que ela proporciona ao consumidor.


Quando sugiro que as horas de trabalho devam ser reduzidas a quatro não estou fazendo supor que o resto do tempo seja gasto em meras futilidades. O que eu quero dizer é que quatro horas de trabalho habilitam um homem para as necessidades e o conforto elementares da vida e que o resto do tempo poderia ser empregado, como lhe aprouvesse, em coisa úteis. É parte indispensável de qualquer sistema social que a educação deveria ser levada muito além do que ela o é, presentemente, e, em parte, teria por objetivo tornar o homem capaz de usar o “lazer” inteligentemente. E quero, sobretudo, acentuar que não estou pensando em coisas que poderiam ser consideradas “altamente intelectuais”. As danças campesinas se extinguiram, exceto nas zonas rurais longínquas, mas os estímulos que causaram o seu cultivo ainda devem existir na natureza humana. Os prazeres das populações urbanas têm se tornado, sobretudo, passivos, como ir ao cinema, assistir a uma partida de futebol, ouvir uma sessão de rádio, e assim por diante. Isso resulta do fato de suas energias terem sido absorvidas inteiramente pelo trabalho. Se elas tivessem uma vida de mais “lazer”, poderiam usufruir prazeres nos quais tomassem parte mais ativa.”





“Este sistema de existir uma classe sem ocupação, hereditária, isenta de deveres, foi, todavia, extremamente nocivo. Nenhum dos membros da classe foi instruído no sentido de ser trabalhador e a classe, como um todo, não era excepcionalmente inteligente. A classe pôde produzir um Darwin, mas, em face dele, se encontravam milhares de cavalheiros que nunca pensaram em coisa mais inteligente do que caçar raposas e castigar caçadores furtivos. No momento, as universidades estão em condições de fornecer, de um modo sistemático, o que a classe sem ocupação forneceu acidentalmente, como um subproduto. Isso constitui um grande melhoramento, mas apresenta certas desvantagens. A vida universitária é tão diferente do mundo em liberdade que o homem que vive num milieu acadêmico tende a desconhecer as preocupações e problemas do homem e da mulher; além disso, a maneira de se exprimirem causa uma influência contrária a que deveriam causar sobre o público em geral.”


“Num mundo onde ninguém é obrigado a trabalhar mais do que quatro horas por dia, todo indivíduo, possuído de curiosidade científica, será capaz de entregar-se a ela, e todo pintor poderá preparar os melhores quadros sem morrer de fome. Os jovens escritores não serão obrigados a escreverem coisas sensacionais para atrair a atenção, tendo em vista adquirir a independência econômica necessária, para escrever obras monumentais para o que aliás, chegado o momento, já terão perdido o gosto e a capacidade. Os homens que, em seu trabalho profissional, se tornaram interessados por determinado aspecto da economia política ou do governo, serão capazes de desenvolver suas ideias, sem a separação acadêmica, a qual torna carente de realidade o trabalho dos economistas universitários. O médico terá tempo para se por em dia com os progressos da medicina, o professor não terá de lutar exasperadamente para ensinar, por métodos rotineiros, coisas que aprenderam na mocidade, e que, com o correr dos tempos, ficou provado não serem verdadeiras.
Sobretudo, haverá felicidade e alegria de viver, em vez de nervos em frangalhos, desgaste e dispepsia. O trabalho deve ser dosado para tornar o “lazer” delicioso e nunca para produzir o esgotamento. Uma vez que os homens não se cansam em suas horas de “lazer”, a eles pouco importa que os divertimentos sejam passivos ou insípidos. Pelo menos, um por cento, provavelmente, dedicará o tempo que não foi gasto em pesquisas de alguma importância pública e, uma vez que não dependem dessas mesmas pesquisas para sua manutenção, sua originalidade terá livre curso e não haverá mais necessidade de conformar-se com padrões estabelecidos pelos pundites de idade madura.





Mas, não é somente nesses casos excepcionais que as vantagens do “lazer” aparecerão. Ordinariamente, os homens e as mulheres comuns que têm a oportunidade de uma vida feliz se tornarão mais bondosos, menos opressores e menos inclinados a ver os outros com suspeita. O gosto pela guerra desaparecerá, em parte, por essa razão e, em parte, porque implica um grande e severo trabalho para todos. A boa índole é a única entre todas as qualidades morais a de que mais precisa o mundo, e a boa índole é o resultado do sossego e da segurança para todos; mas, em vez disso, o que escolhemos foi o trabalho demais para uns e a fome para outros. Até agora, continuamos a ser tão ativos quanto o éramos antes da existência das máquinas. Por este ponto de vista, temos sido insensatos, mas não há razão para continuarmos a sê-lo indefinidamente.”


segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

UM DOGMA DESASTROSO, de Paul Lafargue




(Primeiro capítulo da obra O DIREITO À PREGUIÇA)



“Sejamos preguiçosos em tudo,
exceto em amar e em beber,
 exceto em sermos preguiçosos.”

 LESSING


Uma estranha loucura se apossou das classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho, levado até ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e da sua progenitora. Em vez de reagir contra esta aberração mental, os padres, os economistas, os moralistas sacrossantificaram o trabalho. Homens cegos e limitados, quiseram ser mais sábios do que o seu Deus; homens fracos e desprezíveis, quiseram reabilitar aquilo que o seu Deus amaldiçoara. Eu, que não confesso ser cristão, economista e moralista, recuso admitir os seus juízos como os do seu Deus; recuso admitir os sermões da sua moral religiosa, econômica, livre-pensadora, face às terríveis conseqüências do trabalho na sociedade capitalista.




Na sociedade capitalista, o trabalho é a causa de toda a degenerescência intelectual, de toda a deformação orgânica. Comparem o puro-sangue das cavalariças de Rothschild, servido por uma criadagem de bímanos, com a pesada besta das quintas normandas que lavra a terra, carrega o estrume, que põe no celeiro a colheita dos cereais. Olhem para o nobre selvagem, que os missionários do comércio e os comerciantes da religião ainda não corromperam com o cristianismo, com a sífilis e o dogma do trabalho, e olhem em seguida para os nossos miseráveis criados de máquinas (1) 






Quando, na nossa Europa civilizada, se quer encontrar um traço de beleza nativa do homem, é preciso ir consumí-lo nas nações onde os preconceitos econômicos ainda não desenraizaram o ódio ao trabalho. A Espanha, que infelizmente degenera, ainda se pode gabar de possuir menos fábricas do que nós prisões e casernas; mas o artista regozija-se ao admirar o ousado Andaluz, moreno como as castanhas, direito e flexível como uma haste de aço; e o coração do homem sobressalta-se ao ouvir o mendigo, soberbamente envolvido na sua capa esburacada, chamar amigo aos duques de Ossuna. Para o Espanhol, em cujo país o animal primitivo não está atrofiado, o trabalho é a pior das escravaturas (2) Os Gregos da grande época também só tinham desprezo pelo trabalho: só aos escravos era permitido trabalhar, o homem livre só conhecia os exercícios físicos e os jogos da inteligência. Também era a época em que se caminhava e se respirava num povo de Aristóteles, de Fídias, de Aristófanes; era a época em que um punhado de bravos esmagava em Maratona as hordas da Ásia que Alexandre ia dentro em breve conquistar. Os filósofos da antigüidade ensinavam o desprezo pelo trabalho, essa degradação do homem livre; os poetas cantavam a preguiça, esse presente dos Deuses: 

O Meliboe, Deus nobis hoec otia fecit (3)

Cristo pregou a preguiça no seu sermão na montanha:

”Contemplai o crescimento dos lírios dos campos, eles não trabalham nem fiam e, todavia, digo-vos, Salomão, em toda a sua glória, não se vestiu com maior brilho.” (4) 

Jeová, o deus barbudo e rebarbativo, deu aos seus adoradores o exemplo supremo da preguiça ideal; depois de seis dias de trabalho, repousou para a eternidade.







Em contrapartida, quais são as raças para quem o trabalho é uma necessidade orgânica? Os “Auvergnats”; os Escoceses, esses “Auvergnats” das ilhas britânicas; os Galegos, esses “Auvergnats” da Espanha; os Pomeranianos, esses “Auvergnats” da Alemanha; os Chineses, esses “Auvergnats” da Ásia. Na nossa sociedade, quais são as classes que amam o trabalho pelo trabalho? Os camponeses proprietários, os pequeno-burgueses, uns curvados sobre as suas terras, os outros retidos pelo hábito nas suas lojas, mexem-se como a toupeira na sua galeria subterrânea e nunca se endireitam para olhar com vagar para a natureza.

E, no entanto, o proletariado, a grande classe que engloba todos os produtores das nações civilizadas, a classe que, ao emancipar-se, emancipará a humanidade do trabalho servil e fará do animal humano um ser livre, o proletariado, traindo os seus instintos, esquecendo-se da sua missão histórica, deixou-se perverter pelo dogma do trabalho. Rude e terrível foi a sua punição. Todas as misérias individuais e sociais mereceram da sua paixão pelo trabalho.




NOTAS: 

(1) Os exploradores europeus param espantados diante da beleza física e da atitude orgulhosa dos homens das tribos nômades primitivas, não manchadas pelo que Paeppig chamava o “bafo envenenado da civilização”. Ao falar dos aborígines das ilhas da Oceania, lorde George Champbell escreve: “No mundo não há povo que impressione mais à primeira vista. A sua pele lisa e de um tom ligeiramente acobreado, os seus cabelos louros e ondulados, o seu belo e alegre rosto, numa palavra, toda a sua pessoa formava uma nova e esplêndida amostra do genus homo; o seu aspecto físico dava a impressão de uma raça superior à nossa.” Os civilizados da Roma antiga, os Césares, os Tácitos, contemplavam com a mesma admiração os germanos das tribos comunistas que invadiam o Império Romano. – Tal como Tácito, Salviano, o padre do século V, a que chamaram o mestre dos bispos, apresentava os bárbaros como exemplo aos civilizados e aos cristãos: “Somos impudicos no meio do bárbaros, que são mais castos do que nós. Mais do que isso, os bárbaros ficam magoados com a nossa lascívia, os Godos não suportam que haja entre eles debochados da sua nação; entre eles, só os Romanos, pelo triste privilégio da sua nacionalidade e do seu nome, têm o direito de serem impuros. [A pederastia estava então em grande moda entre os pagãos e os cristãos...] Os oprimidos vão para junto dos bárbaros procurar a humanidade e um abrigo” (De Gubernatione Dei). – A velha civilização e o cristianismo nascente corromperam os bárbaros do velho mundo, tal como o cristianismo envelhecido e a moderna civilização capitalista corrompem os selvagens do novo mundo. O Sr. F. c Play, cujo talento de observador devemos reconhecer, mesmo quando se repelem as suas conclusões sociológicas, manchadas de prudhomismo filantrópico e cristão, diz no seu livro Les Ouvriers européens (“Os Operários Europeus”) (1885): “A propensão dos Bachkires para a preguiça [os Bachkires são pastores seminômades da vertente asiática dos Urais], as distrações da vida nômade, os hábitos de meditação que fazem nascer nos indivíduos mais dotados comunicam por vezes a estes uma distinção de maneiras, uma subtileza de inteligência e de Juízo que raramente se notam no mesmo nível social numa civilização mais desenvolvida... O que mais lhes repugna são os trabalhos agrícolas; fazem tudo exceto aceitar a profissão de agricultor.” De fato, a agricultura é a primeira manifestação do trabalho servil na humanidade. Segundo a tradição bíblica, o primeiro criminoso, Caim, é um agricultor.

(2) O provérbio espanhol diz: Descansar es salud (Descansar é saúde).

(3) Ó Melibeu, um Deus deu-nos esta ociosidade. Virgílio, conômico (Ver apêndice).

(4) Evangelho segundo São Mateus, cap
. VI.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

MACUNAÍMA - O HERÓI SEM NENHUM TRABALHO





Em Macunaíma, Mário de Andrade questiona a idéia de preguiça como fraqueza e valoriza o ócio criativo do brasileiro, que considerava libertário


Celio Turino

“Ai! que preguiça!...”. Foram estas as primeiras palavras de Macunaíma, “herói de nossa gente”, imortalizadas por Mário de Andrade. Nesta obra, o autor se assumiu na função de poeta épico e reuniu minuciosamente as fantasias e as histórias que compõem o imaginário do povo brasileiro, assim como Homero percebeu nas batalhas troianas e nas aventuras de Ulisses a alma do povo grego.

Em Macunaíma, obra definida por Mário de Andrade como uma rapsódia brasileira, a identidade dos brasileiros vai se revelando ao compasso da narrativa, na descrição de “causos” e personagens populares, na “desgeografização” de territórios e na “destemporalização” de histórias.

“Macunaíma, herói de nossa gente, era preto retinto e filho do medo da noite”. Nascido tapanhuma, índio das margens do Uraricoera, essa tribo inventada para designar os negros vistos pelos povos da terra. Em tupi, os povos de fora recebiam duas designações: tapuy-una-ô – gente preta – e tapuitinga – gente branca. Macunaíma era um tapuy-una-ô, um tapanhuma, e foi brilhantemente representado no cinema por Grande Otelo.

A história nos apresenta um herói sobre-humano, “nascido no fundo do mato virgem”, que tem na busca da muiraquitã perdida a construção de sua aventura. Entre inúmeros desafios, ele deveria ir a São Paulo para reconquistar seu talismã, que estava com o gigante capitalista Venceslau Pietro Pietra, ou o regatão da Amazônia, aquele que regateia, que transforma em mercadoria cada coisa ou pessoa que enconta, também conhecido como o gigante comedor de gente, o Piaimã da mitologia taulipangue.




A obra foi escrita em seis dias, com o autor deitado em uma rede, trocando idéias com crianças. Foi assim que ele descortinou o caráter de seu povo, pois a luta pela reconquista da muiraquitã revela a personalidade brasileira, o jeito gingado de buscar soluções, enfrentar os problemas, o ócio criativo. Em um prefácio preparado por Mário de Andrade e só recentemente publicado, o autor revela:

“O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora, depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado isso antes de mim, porém a minha conclusão é uma novidade para mim porque tirada da minha experiência pessoal. E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não; em vez entendo a realidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes, na ação exterior, na língua, na História, na andadura tanto no bem como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional.”

A lógica da história de Macunaíma é não ter lógica, uma contradição de si mesma, e a cada página vão sendo reveladas as cores do Brasil, o povo, a alma aventureira (que alguns anos depois foi analisada pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil), cheia de brincadeiras sem culpas (Macunaíma adorava brincar, principalmente com Ci, mãe do mato, mas não só com ela). E essa identidade procurada em Macunaíma nem era exatamente brasileira: “Sou americano, meu lugar é na América. A civilização européia decerto esculhamba a inteireza de nosso caráter”.

Após seis anos sem falar, Macunaíma proferiu sua primeira frase: “Ai! que preguiça!...” Em uma só frase ele uniu duas culturas, dois idiomas, formando uma onomatopéia e um pleonasmo. Ai, em tupi, significa um comportamento e também um animal: o bicho preguiça, o mamífero de movimentos extremamente lentos que tanto surpreendeu os primeiros europeus.

A onomatopéia “Ai!” também lembra o som natural que fazemos ao despertar, estirando músculos e membros de modo preguiçoso, preparando-os para mais um dia. Quando falamos ou lemos “Ai”, pensamos em preguiça; repetindo as mesmas palavras em idiomas distintos, cria-se um pleonasmo que confere mais vigor e clareza à expressão.

Monteiro Lobato também tratou do tema, mas, neste caso, desdenhando Jeca Tatu, o caipira indolente, que “de qualquer jeito se vive”, atormentado por bichos-do-pé, devorado por vermes. Anos depois, o próprio Lobato reviu sua opinião, mas esses registros literários, em forma de sátira ou de condenação, expressam uma opinião corrente, um imaginário social presente até os dias de hoje. De um lado, a preguiça como fraqueza da alma, fonte de males; de outro, a preguiça transformadora, o ócio criativo do brasileiro.



Esse imaginário começou a ser construído através das narrativas do início da dominação portuguesa no Brasil. Segundo alguns relatos, os colonizadores encontraram por aqui uma sociedade de recusa do trabalho, que provocava um misto de admiração e escândalo pela facilidade com que obtinha o seu sustento e a nudez desavergonhada de índios preguiçosos e saudáveis, e robustos, e felizes.... Talvez por isso os colonizadores tenham se dedicado com tanto afinco à evangelização do gentio: caçando-os, escravizando-os, livrando-os do reino do pecado, oferecendo-lhes o mundo do trabalho.

Com o tempo, a imagem negativa da preguiça se transferiu do indígena para o negro, principalmente após a abolição da escravatura. Pouco importava se o trabalho escravo havia sustentado a economia da Colônia e do Império, pois os bandos de negros sem trabalho, expulsos das fazendas de café, vagando pelas estradas, habitando os bairros pobres dos extremos das cidades, vivendo de biscates, inventando a capoeira, e a feijoada, e o samba, provocavam medo; eram associados à vagabundagem e ao perigo.

No início do século XX, São Paulo passou por uma contínua explosão demográfica, tendo aumentado sua população em 270% no curto período de dez anos, entre 1890 (65 mil habitantes) e 1900 (240 mil habitantes). Nos vinte anos seguintes, a população mais que dobrou (580 mil habitantes). Era gente nova chegando todos os dias, principalmente imigrantes, que compunham mais da metade da população de São Paulo e que se somariam à gente do interior, caipiras e ex-escravos. Hoje o paulistano médio associa criminalidade e vagabundagem à onda migratória, aos nordestinos e negros, que vieram de algum lugar, mas, certamente, “de fora” de São Paulo (pelo menos o pensamento médio gostaria que assim fosse).

Tudo em pouco tempo. Cinqüenta anos antes, os proletários brancos nem viviam neste continente. Quando aqui chegaram (depois de uma travessia de mais de um mês no mar, em absoluto desconforto), foram primeiro para as fazendas de café; percebendo, porém, que não valia a pena se esforçar em latifúndios ainda maiores que os da velha Europa, deixaram a vida no interior e ganharam a cidade. A expressão “Hoje é dia de branco!”, que se refere aos dias de trabalho, é resultante da construção desta auto-imagem de trabalhadores dedicados.


Com o tempo, ocorreu uma aproximação entre o negro ex-escravo, os caipiras do interior e o imigrante pobre, aqueles que não conseguiram realizar o seu “dia de branco”. Esta aproximação foi facilitada pelas condições sociais e pela própria configuração geográfica. Da ajuda recíproca na adversidade ao encontro nas festas, essa gente se entrelaçou no samba e no futebol jogado na várzea dos rios (origem de times como Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Portuguesa). Observando esse encontro de “preguiçosos” estava Mário de Andrade, nascido e criado na “barra funda” do Rio Tietê.

A epopéia de Macunaíma se insere num momento em que São Paulo estava construindo a imagem de “locomotiva do Brasil”, cidade que exalta o trabalho em hino (“São Paulo que amanhece trabalhando...”). A narrativa de Mário de Andrade envolve este embate entre preguiça e trabalho, alienação e emancipação, e nela o autor ressalta um ponto de vista diferente da visão criminalizadora da preguiça – que condena o ócio como desvio do espírito e até mesmo o lazer um pouco mais livre, aquele que sai do controle –, que estava inserida no contexto higienista da época.


Para Mário de Andrade/Macunaíma, a preguiça foi o símbolo da mais perfeita consciência de movimento e sabedoria, e por isso o escolheu para petrificar a cidade, transformando São Paulo em totem de um bicho preguiça.

Cabe destacar que a idéia de preguiça em Mário de Andrade é anterior ao livro Macunaíma, e foi sedimentada em um artigo publicado em 3 de setembro de 1918 no jornal A Gazeta. Podemos perceber que vários conceitos já estavam perfeitamente elaborados nesse artigo, intitulado “A Divina Preguiça”.

Ainda jovem, Mário de Andrade percebeu a preguiça em seu outro significado. “A Divina Preguiça” apontou a necessidade de rever conceitos e processos acerca do desencadeamento da civilização diante do impacto da guerra em um processo dantesco de matança e barbárie. Assim como ele, outros autores escreveram a respeito de um novo significado para a preguiça, como o manifesto do genro de Karl Marx, Paul Lafargue, em O Direito à Preguiça, e O Elogio ao Ócio, de Bertrand Russell.


Em “A Divina Preguiça”, Mário de Andrade deixou claro que a humanidade nem sempre teve a mesma opinião sobre o assunto, e demonstrou que o seu significado mudou de acordo com o tempo, as necessidades e os valores decorrentes de cada momento histórico. Neste artigo, vai se consolidando a convicção da importância de travar um embate com essa noção moralizadora e controladora do tempo (que deveria ser) livre das pessoas. O ócio é apresentado em seu contrário, como um elemento libertário e de recusa da dominação em que o riso, a brincadeira e o lazer são entendidos como fundamentais para a emancipação humana. Seu artigo contesta outro, de um famoso articulista e acadêmico brasileiro, Austregésilo de Athaíde, que se refere à preguiça como sendo uma patologia a ser combatida, curada.

Mário de Andrade escreveu Macunaíma dez anos depois, aprofundando conceitos e apresentando a preguiça como uma das matrizes do cárater nacional, uma preguiça criativa, gingada e inovadora.

Como constatou o sociólogo francês Roger Bastide, um dos fundadores da Universidade de São Paulo, “o sociólogo que quiser compreender o Brasil não raro precisa transformar-se em poeta”. Mário de Andrade fez o contrário; foi o poeta que se travestiu de sociólogo. E o fez com a maestria de um artista e mágico que, a partir do lúdico, produz efeitos emocionais e de análise; um mágico da interpretação do Brasil. “Não se pode encontrar um livro mais brasileiro que Macunaíma”, disse Bastide, identificando na obra “uma selvageria lírica atropelando com seu riso uma civilização de importação” e comparando-a a Gargântua, de François Rabelais, na construção de um herói popular com origem no folclore e que dá uma nova dimensão aos costumes, jeitos e falares do povo. E foi assim mesmo que Mário de Andrade procedeu, unindo campos geralmente separados, a magia e a razão.

As histórias que nosso herói Macunaíma descobriu, em sua original falta de índole, foram compondo um novo caráter de brasileiro e, quem sabe, o de sul-americano. Um cadinho de cada lugar, um pouquinho de cada pessoa, de cada tempo. Em sua aventura, o herói conheceu pessoas extraordinárias, mergulhando em um mundo de magia e mistérios. Sendo Macunaíma um herói preguiçoso, no fim do seu tempo de aventuras virou estrela, pois no céu reencontraria a felicidade e uma vida de lazer. E Ci, sua amada.


Com o olhar de poeta, Mário de Andrade nos demonstrou a ganância insaciável de Piaimã e como ele tira o sangue, o lazer e os sonhos de nossa gente. Macunaíma, com a astúcia da preguiça, venceu seus inimigos, enfrentou Piaimã e também o derrotou; uniu-se aos seus irmãos, atravessou o Brasil, lançou mão de armas que aprendera a usar na infância. Brincou e teve coragem. Não se deixou enganar e seguiu em frente até voltar a ser estrela, uma estrela de brilho inútil que nos mostrou que o ócio não é somente não fazer nada; é um meio de emancipação e de livre pensamento.

Macunaíma e seus amigos empregaram o verbo fazer em todos os momentos em que foi necessário tomar uma decisão: “Sim, Curupira fez”; “Sim, cotia fez”; “Essa eu caço! Ele fez”; “Ai! Maanape fez”; “Ui! Que o herói fez”; “Sai azar! O rapaz fez”; “Arre que posso te comer, fez”. São construções freqüentes na rapsódia de Macunaíma, o herói preguiçoso, que não fugiu à luta e fez. Em contrapartida, nós, os práticos e utilitários, vivemos adiando nossa felicidade. Conjugamos o verbo no gerúndio, em um tempo que nunca termina. Vamos “fazendo” e não concluímos. Vamos “transferindo” e não alcançamos. Vamos “governando” e não resolvemos. Mas até os nossos sonhos vão se transformando em coisas, em mercadoria. E o lucro vai crescendo, acumulando-se nas mãos de poucos.

Se não quisermos o destino de ser alimento para o gigante comedor de gente, melhor romper o cerco e conquistar algum tempo para nós mesmos. E começar bem cedo, encontrando tempo para um lazer diferente que nos dê coragem para enfrentar Piaimã. A fenda, a fresta, é bem pequena, e se quisermos aproveitá-la, terá que ser em nosso tempo livre, no tempo que pode sair do controle. Mas antes de começar, melhor estirar os músculos, expandir a mente e, bem devagar, alongar os braços e dizer:
- Ai! Que preguiça!...




(
Celio Turino é mestre em História pela Unicamp e especialista em administração cultural pela PUC-SP. É secretário de Programas e Projetos do Ministério da Cultura. Autor de Na trilha de Macunaíma – ócio e trabalho na cidade. Ed. Senac.)

Revista de Historia da Biblioteca Nacional 





(Por preguiça, manteve-se a ortografia original).






quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O MAR QUANDO QUEBRA NA PRAIA, de Rita Brant





Sabe,
eu preciso falar:
é que eu
gostaria muito
de ser muito amada.
De ser uma Jorge Amada.
Uma tão amada,
que eu me espraiasse
de uma preguiça serena
de quem balança
na varanda de uma rede,
sentindo um revoar
macio de saudade de seda,
de uma luz que dança
no panejar da palmeira
e da onda que chega
sem compromisso de pressa
nem escassez de espuma.
Para isso então,
tento transformar uma gota
uma só gota
em um oceano inteiro,
um mar sem fim,
um pescador de mar
enfim...
É muito bonito o mar
quando quebra na praia.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

OS MÍNIMOS CARAPINAS DO NADA, de Autran Dourado



 Nota ociosa

Eu sei que o texto é longo. Mas... leia! 

Leia devagar, 

preguiçosamente: 

é um dos mais belos contos 

sobre o ócio e a arte.





No Ponto, na farmácia de seu Belo, no armazém de secos e molhados de seu Bernardino, mesmo no final das tardes de conversação distinta do Banco Duas Pontes, no gabinete do nobre de alma e de gestos Vítor Macedônio (o belo varão, bem-nascido e gentil-homem), que reunia em torno de si (ali se servia do melhor conhaque francês) os potentados do café como o coronel Tote ou ilustres desocupados como seu Bê P. Lima, maledicente e boa-vida, mas de berço, enfim nas várias ágoras da cidade onde se comerciava a novidade, a imaginação, o ócio e o tédio...


Nas janelas das casas terreiras de grandes e pesadas janelas de marco rústico, baixo e retangular, junto das calçadas, onde se ficava sabendo de tudo pelos passantes que iam e vinham (como era bom se debruçar e bater dois dedinhos de prosa ou fugir para dentro, se quem apontava na esquina era um maçante), de tudo se sabia sem carecer de estafeta e selo, as notícias e novidades: quem andava pastoreando quem, aquela que tinha caído na vida e agora era carne nova, estava de rapariga na Casa da Ponte, na testa de quem apontara o broto de futura e soberba galhada...



Mesmo nas nobres sacadas de ferro, nas janelas de ricos sobrados, podia-se ver a qualquer hora do dia, no enovelar lento do tempo, os carapinas do nada, ocupados na gratuita e absurda, prazerosa ocupação.

Eram os carapinas do mínimo e do nada, os devoradores das horas, insaciáveis Saturnos, dizia o sapientíssimo, alambicado, precioso dr. Viriato. Quem não tem o que fazer, faz colher de pau e enfeita o cabo, vinha por sua vez o proverbial, memorioso, eterno, pantemporal noveleiro Donga Novais, uma das poucas pessoas a não se entregar inteiramente ao vício e paixão da cidade. É porque para ele a entidade metafísica do tempo não existe (como para os platônicos que, ao contrário dos hebreus, não tinham o senso da historicidade, lidavam com o puro universal), passado, presente e futuro são uma coisa só, retrucava o dr. Viriato súbito espantosamente aderindo à fiação e tecelagem dos nossos mitos. Ele que era um cientista exaltado, um agnóstico convicto, de dialético linguajar maneirista que demandava precioso raciocínio, imaginação, dicionário.



Não que o dr. Viriato tivesse as mãos ocupadas no admirável passa-tempo (santo remédio para a ansiedade e a angústia), que demandava habilidade, precisão e paciência, a que se dedicavam aristocraticamente potentados e pingantes que só tinham de seu serem bem-nascidos. Tão alto-crítico ele era, jamais se permitiria aquela vamos dizer arte, paixão antiga de Duas Pontes. De uma certa maneira ele colaborava era na criação de nossos mitos, mesmo negando-os, racionalista que ele se dizia e era.

Quando, quem inventou tão sublime vamos dizer desocupação e alívio do espírito, perguntava o dr. Viriato a seu Donga Novais, sapiência viva do nosso tempo e história, os fabulosos, inconclusos e aéreos anais. Você, Donga, é o Sócrates da nossa pólis. Não sei, dizia desapontando à gente o nosso macróbio cidadão Donga Novais: amor e ócio são maus negócios. Eu acho que deve ser invenção de índio, que enfeitava caprichosamente as suas flechas que, partidas do arco, não voltavam mais. Mas eles não estão enfeitando nada, dizia por sua vez o dr. Viriato. Os puristas, os cultores do absoluto, os escribas da idéia, dos protótipos e arquétipos ideais, os minúsculos carapinas do nada.



Seu Donga ficou um tempo parado, assuntando, ideando. Não é que o senhor tem razão, dr. Viriato? Sim, dizia o médico, porque a finalidade mágica dos bisões e demais caças pintadas nas cavernas pelo homem de Cro-Magnon... Seu Donga desatou a rir, não tinha mesmo jeito aquele dr. Viriato, comia brisas com pirão de areia.

Porque havia três categorias de livres oficinas que se dedicavam à nobre arte de desbastar e trabalhar a madeira com o simples canivete e um ou outro instrumento auxiliar feito as latinhas que faziam as vezes do compasso. Três, porque não se podia considerar como cultores da Idéia, do sublime e do nada, os carpinteiros e marceneiros, que se utilizavam da madeira e de instrumentos mais eficientes como o formão, o cepilho, as brocas, e tudo sabiam de sua arte, ofício e meio de vida. São os nossos sofistas, dizia o dr. Viriato, que pensavam ser possível ensinar a arte e recebiam pelo seu trabalho e tinham as mãos calosas.




A primeira categoria quase se podia, se não fosse o nenhum pagamento, considerar uma corporação de operários, que faziam de sua técnica e imaginação um ofício. Se vendiam o produto, não eram bem vistos pelos autênticos carapinas do nada, os sublimes; podiam começar a receber encomendas como qualquer trabalhador, o que se considerava degradante.

Não há dúvida que o elogio é uma forma sublimada de remuneração e só se remunera operário, o que nem de longe se podia dizer deles (se ofendiam) que nunca pegaram no pesado. Eles e seus ancestrais, patriarcas absolutos, sempre estiveram do lado do cabo do chicote.





Eram os fabricantes de carrinhos de bois, caminhões, mobilinhas, monjolos de sofisticada feitura e perfeita serventia, usados para compor presépio. Em geral exerciam a sua ocupação ociosa em casa, se serviam de instrumentos caseiros para auxiliar o trabalho do canivete, e chegavam a utilizar outros materiais que não a madeira, como espelhinhos, pregos, folhas-de-flandres.

A segunda categoria, os marceneiros da nobre arte. Era exatamente aquela, sem metáfora ou imagem, de que falou o sábio e intemporal rifoneiro Donga Novais - os que literalmente enfeitavam cabo de colher de pau. Às vezes se dava o caso de que a colher ficava tão bem-feitinha e artística, com delicado e sutil rendilhado, labiríntica barafunda, de quase absoluta nenhuma serventia, que a peça passava de mão em mão por toda a parentela, vizinhos e mesmo estranhos. Os elogios que recebia valiam por uma paga ao artista, que acabava por consentir (queriam) que a mulher ou a filha colocasse a colher na parede, para nunca ser usada.





O perigo dessa categoria era o autor, por vaidade ou outro motivo subalterno, gravar o seu nome na concha ou no cabo da colher. Como o primeiro artista da antiguidade que gravou numa obra sua a frase "Felix fecit", inaugurando assim o culto da personalidade, tão contrário aos artistas do gótico, que nunca tinham a certeza de verem concluídas as catedrais que iniciavam, e eram anônimos, senão humílimos oficiais.

O coronel Sigismundo era exemplo típico dos oficiais da segunda categoria. Era não só meio destelhado e quarta-feira, mas verdadeira alimária. Dele constavam dos anais fantásticas proezas nos seus carros sempre novos e lustrosos, se dando ao luxo e à extravagância de às vezes vestir a sua brilhosa e engalanada farda da Guarda Nacional, que não mais existia, e passear de carro pela cidade.




Tudo se desculpava no coronel Sigismundo, por respeito ou medo. Ele se deu ao máximo, como nos tempos de casa-grande e senzala, de oferecer não uma colher de pau, mas palmatória de manopla por ele rendilhada, verdadeiro instrumento de suplício, ao major Américo, diretor e dono do Colégio Divino Espírito Santo, de terrível e acrescentada memória, capaz de desasnar a própria alimária. O velho major da Guarda Nacional recuou, os tempos agora eram outros. O gesto de ofertar e a utilidade do produto desqualificavam muito o coronel Sigismundo. Podia-se argumentar em seu favor que uma colher de pau finamente trabalhada para remexer panela, o bom dela, após o trabalho do artista, era não servir para coisa nenhuma, puro deleite.

E agora se apresenta a pura, a sublime, a extraordinária terceira categoria. Só aos seus membros, peripatética academia, se podia aplicar estes qualificativos: divinos e luminosos, aristocráticos artífices do absurdo. Eram como poetas puros, narradores perfeitos, cepilhando e polindo as vazias estruturas do nada. A terceira categoria era o último estágio para se atingir a sabedoria e a salvação.



Às vezes se dava o caso de que o artista (e isso não se ensina, ao contrario do que afirmava os sofistas, dizia o Dr. Viriato, emérito teórico do vazio e do absoluto) vinha diretamente da primeira categoria, e alcançava a plenitude do nada , era um dos amados dos deuses, para os quais o grande, senão único pecado é a ignorância. Não se atingia essa categoria (era raríssimo o caso de um jovem a ela pertencer; falta à juventude ócio e paciência) senão a velhice, quando se alcançava a plenitude da arte.

Vovô Tomé era um desses casos raros do artista que passa veloz e diretamente da primeira à terceira categoria. Atribuem a sua proeza e sua mestria no ofício ao sofrimento, que é uma das vias para se atingir o absoluto e a glória. Ele os alcançou, e isso consta dos anais do vento, na última velhice, quando atingiu, de apara em apara, cada vez mas longe e mais longas e mais finas, enroladinhas que nem cabelo de preto, o etéreo e o que lhe restou na mão foi um minúsculo pedacinho de pau. Na mesa, a seu lado, no círculo de luz do cone do abajur, um monte de finíssimas aparas , nenhuma delas partida. Uma obra divina, foi o que disse o famigerado artista Bê P. Lima, quando viu o tiquinho de nada que restou. Falou quem pode, disse seu Donga Novais da sua aérea fantástica e insone janela, almenara da cidade. Um mestre e guru nirvântico, acolitou o Dr. Viriato.



Para atingir esse estágio, o noviço carece de muita paciência, aplicação, humildade, modéstia. É preciso enfrentar a maledicência dos ocupados, vencer a delicadeza e timidez, correr o risco de se ferir.

O mais elevado ideal dos membros dessa categoria era se dedicar a tão sublime ocupação sentado numa roda, prestando atenção no desenrolar da conversa vadia e mesmo dela participando com um ou outro aforismo ou ponderação, sem despregar os olhos da mecânica ocupação. Conta-se a fantástica proeza de um dos sacerdotes do culto, o inefável seu Bê P. Lima, que começou desbastando um grande pedaço de madeira e foi indo, de caracol, sem pressa, preciso, cuidando do seu gratuito ofício, o ouvido porém atento a conversa, que esquentava, e seu Bê não queria perder nada, cujo tema principal era comportamento de certa dama de nossa cidade.



E de repente se suspendeu a conversação, todos voltados para ele. Seu Bê se aproximava do fim, faltava-lhe uma última e mínima apara para atingir o nada. O próprio seu Belo veio lá de dentro do laboratório e ficou à espera. Então aconteceu. Não se podia dizer se o que ficou na mão de seu Bê fosse ou não minúsculo caracol que ele soprou. Como num circo ou num concerto, após sustenida atenção, a respiração suspensa, a roda prorrompeu num coro de palmas.

Seu Vítor Macedônio, que passava pela farmácia, diante do silêncio da roda, parou. Não se dedicava ao nobre ofício, mas vendo a atenção de todos, também ele aderiu à rodada de palmas. Seu Bê, me faça o favor de comparecer no banco lá pelo fim da tarde, para comemoramos o evento. Mais do que o normal, ele seria generoso com seu conhaque francês.







Acredito com os outros que o móvel inicial que levou vovô Tomé à nobre ocupação de pica-pau tenha sido o sofrimento. O suicídio de tio Zózimo, a loucura mansa de tia Margarida, um desastre econômico de papai que o obrigou a vender a Fazenda do Carapina para que não lhe tomassem a casa. Mas muito antes da terrível morte do tio Zózimo ele já se ocupava em fazer a canivete um ou outro objeto de alguma serventia. A gratuidade mesmo de magníficos caracóis ele só viria a atingir depois da morte por enforcamento de tio Zózimo.

Mas antes mesmo do primeiro desses tristes acontecimentos vovô Tomé já se dedicava a manter as mãos ocupadas. Acredito em parte que foi a tentativa de manter as mãos ocupadas para vencer a opressão e a angústia que o levou a se dedicar a pequena tarefas caseiras. Porque não lhe bastava fazer um longo, caprichado e lento cigarro de palha, tarefa em que era perito.







Os outros podem estar certos, e eu mesmo recuaria no tempo (não conhecia senão de crônica vovô Zé Mário, pai de vovô Tomé), se pudesse contar a historia que num dia de maior solidão e sufocamento, sob a maior promessa de sigilo, me contou vovô Tomé. Mas é um caso longo não é para agora.

Não , não foi só isso. Havia um lado menino muito bom em vovô Tomé. Eu me lembro do entusiasmo em que ele ficava quando da chegada de um circo à nossa cidade, mesmo que fosse circo de tourada. E eu muito criança ia com ele, ficava no seu camarote. Só depois é que o abandonei para estar com meus amigos mais velhos lá no alto das arquibancadas.

Me lembro (e isso mamãe e vovó Naninha confirmam) dos primeiros passos de vovô Tomé na arte de picar pau. Eu estava sentado no chão de tábuas lavadas e secas da sala, cortando umas figuras de umas revistas velhas. Eram de uma coleção de tia Margarida.

Quando vovô Tomé viu e me chamou. João, deixa isso de banda, guarde as revistas onde você tirou, venha comigo, tive uma idéia. Vamos ao armazém de seu Bernardino buscar material.




Ele me deu a mão e eu estava muito feliz. Não era meu aniversário quando, como fazia com os netos e afilhados, ele nos levava ao armazém de seu Bernardino para comprar um sapato de ver Deus.

No armazém, depois de uma conversa breve e formal com seu Bernardino, vovô perguntou se ele podia nos arranjar um caixote vazio. Seu Bernardino se espantou com o pedido, vovô ainda não era da confraria. Quer que eu mande levar, perguntou seu Bernardino. Se me fizessem a bondade... Eu tive um ímpeto, disse pode deixar que eu levo. Seu Bernardino olhou pra mim, olhou para vovô Tomé, e disse como ficamos, seu Tomé? Mande levar, disse vovô. E o preço da peça e do carreto, por favor. Seu Bernardino disse brincando nem o preço de uma das suas fazendas bastaria. Então lhe mandarei no fim da safra, uma saca do melhor café tipo sete. Ora, seu Tomé, e eu ia acreditar?! Não é pelo caixote, é por nossa velha amizade, disse vovô Tomé.




Aprendi então um dos preceitos do seu código de aristocracia rural. Eu e ele não podíamos fazer qualquer trabalho manual, a nossa posição nos vedava. O primeiro foi (como esquecer!) quando soube que o delegado seu Dionísio tinha mandado dar uma surra num preso para ele confessar. Em homem não se bate, é melhor matar, por respeito à sua condição de homem, é mais digno. Outro preceito do seu código de honra aprendi muito menino, quando uma vez, a mando de mamãe, lhe fui tomar bênção. Ele me recusou a mão, disse homem não beija mão de homem. Era um comportamento raro em Duas Pontes, cidade de velhos patriarcas.

Nem bem chegamos em casa e veio o empregado com o caixote. Era um caixote de madeira branca que, pelos dizeres e pelo cheiro, se viu que tinha servido para embalar bacalhau, madeira das estranjas.



Vovô tirou o paletó, desabotoou o colete, afrouxou o colarinho e começou a fazer um caminhãozinho para mim. Para quem parecia estar usando as mãos pela primeira vez, não estava mal. No final da tarde, a obra estava pronta. Tinha ficado um tanto rústica, mas eu não disse nada a vovô Tomé, para não atrapalhar a sua satisfação.

No outro dia dei com vovô Tomé aparando pachorrentamente um pedaço de pau. Quê que o senhor está fazendo, perguntei. Uma colher de pau para Naninha, ela me pediu, disse ele meio envergonhado, talvez pela sua utilidade doméstica. O senhor parece que não está gostando, não é, perguntei. Para lhe ser franco, não, disse vovô. O que gostaria de fazer, um monjolinho, indaguei. Não, gostaria de fazer nada, disse ele. Nada, à toa? Disse eu meio desapontado. Não, fazendo absolutamente nada, quer dizer, ir aparando vagarosamente a madeira até não restar mais nada. Assim feito seu Bê, perguntei. Vovô riu, achava muita graça nas bestagens de seu Bê P. Lima, nas histórias obscenas que ele contava, quando não tinha menino por perto, na presença de menino e de mulher ele fechava a cara, metia a viola no saco, se dava ao respeito. Bê é um artista do nada, por isso é um homem feliz, disse.





E vovô Tomé foi ficando um perito na arte dos caracóis. Demorava muito o aprendizado, ele porém não tinha pressa. Pra quê? dizia, não falta matéria-prima neste mundo. E brincando, haja povo na terra para desbastar a floresta amazônica. Às vezes fico imaginando o povo todo do mundo picando pauzinho. Seria a paz e a união dos homens.

Eu tinha um certo medo de que vovô enjoasse do gratuito ofício e virasse um teórico do não fazer nada, absolutamente nada. Seu Bê, por exemplo, não tinha dessas cogitações, apenas ia aparando as suas fitas e caracóis.

Vovô não tinha a pachorra e a tranquilidade de seu Bê. Era exigente, ia ao armazém de seu Bernardino escolher as melhores madeiras, havia uma certa qualidade de pinho que era em si uma beleza. A madeira não podia ter olhos nem veios muito acentuados, nem mistura de tons. Quanto mais lisa e uniforme, melhor. Quem tem pressa não faz nada, dizia ele já agora conceituoso. Ele tinha a sua poética, a diferença entre ele e seu Bê é que seu Bê não tinha poética nenhuma, era um puro artista do nada.



Com o passar do tempo, vovô Tomé viu que se aprende até certo ponto, depois é desaprender de tal maneira que cada dia se tenha diante de si o puro nada.

E os anos passaram e eu me afastei de vovô Tomé. Fui para Belo Horizonte, onde fiz o meu curso superior sustentado por ele. É com remorso que me lembro de que lhe escrevi apenas umas minguadas cartas. Em nenhuma delas perguntei como ele ia na sua velha arte. Fiquei sabendo por uma carta de vovó Naninha que ele tinha morrido.

Voltei imediatamente a Duas Pontes. Vovó Naninha disse que ele morrera de pé, feito queria, sem curtir leito de doente, à grande mesa da sala de jantar, tirando um enorme caracol. Tinha encontrado o seu nada.

Vovó Naninha me deu o seu canivete preferido. Não sei o que fazer com ele, é de outra maneira que procuro o meu nada.




(Os cem melhores contos brasileiros do século)