sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O ELOGIO DO LAZER, POR BERTRAND RUSSEL





“Quando uma pessoa, que já possui o bastante para viver, resolve ocupar-se em uma atividade social, a de professor ou a de datilógrafo, por exemplo, diz-se que essa pessoa - seja homem ou mulher - está tirando o pão da boca dos outros, e, por conseguinte, procedendo mal. Se este argumento fosse conclusivo, bastaria simplesmente que todos nós fossemos indolentes e assim teríamos todos as bocas cheias de pão. Mas as pessoas que dizem tais coisas se esquecem de que, habitualmente, o homem gasta os proventos de seu trabalho, e, assim o fazendo, está empregando esse numerário.




Gastando, pois, sua renda, o homem põe na boca de outros, quando lhas tira, ao ganhá-la. Por este ponto de vista, o verdadeiro vilão é o homem parcimonioso. Se ele, simplesmente, puser suas economias num pé-de-meia, como o proverbial camponês francês, é evidente que não está dando o devido emprego a seu dinheiro. Mas se investe suas economias, o assunto é menos evidente e diferentes casos podem apresentar-se.


Uma das maneiras mais comuns de empregar economias é emprestá-las ao governo. Em virtude desse fato, grande verba dos orçamentos da maioria das administrações públicas de países civilizados é empregada no pagamento do após-guerra ou na preparação de guerras futuras. O homem que empresta dinheiro ao governo encontra-se na mesma posição do homem mau de Shakespeare, que assalariava assassinos. O resultado líquido que tem o homem de hábitos econômicos é fazer aumentar as forças armadas do Estado ao qual ele empresta suas economias. Evidentemente, melhor seria se ele mesmo gastasse o seu dinheiro, ainda que o fizesse na bebida ou no jogo.”





“Desejo dizer, com toda seriedade, que grande mal está sendo causado ao mundo moderno, com a crença na virtuosidade do trabalho e com a de que o caminho para a felicidade e prosperidade consiste na sua diminuição organizada.”
“Antes de tudo, o que é o trabalho? Há trabalho de duas espécies: a primeira consiste em alterar a posição da matéria na terra, ou próxima à sua superfície, relativamente à outra matéria; a segunda, em dizer aos outros que façam assim. A primeira espécie é desagradável e mal paga; a segunda, agradável e bem remunerada. Esta última é capaz de ilimitada extensão - não há somente aqueles que dão ordens, mas os que dão conselhos sobre as coisas que deveriam ser ordenadas. Usualmente, as corporações organizadas dão duas espécies opostas de conselhos - é o que se chama política. A habilidade necessária para essa espécie de trabalho não é o conhecimento dos assuntos a respeito dos quais são dados os conselhos, mas a arte de falar e de escrever persuasivamente: isto é, a arte da propaganda.


Na Europa, há uma terceira classe de homens, mais respeitada que qualquer uma dessas de trabalhadores, o que não acontece na América. Há os homens que, pelo direito de propriedade, podem obrigar os outros a pagar pelo privilégio de poderem viver e trabalhar em suas terras. Esses proprietários são, em geral, indolentes, e, por isso, é de se esperar que sejam louvados. Infelizmente, sua ociosidade só pode tornar-se realidade pelo trabalho dos outros. Na verdade, seu desejo de ter uma confortável ociosidade é, historicamente, a fonte de todo o Evangelho do Trabalho. O que nunca desejaram é que outros pudessem seguir seu exemplo.”





“Do início da Civilização até a Revolução Industrial, por via de regra, um homem podia produzir, pelo trabalho árduo, pouco mais do que era necessário para sua subsistência e de sua família, ainda que a mulher trabalhasse, pelo menos, tão intensamente quanto ele, e os filhos o ajudassem com seu trabalho, logo que tivessem a idade suficiente para fazê-lo. O pequeno excedente sobre o estritamente necessário não era deixado para aqueles que o produziam, mas usurpado pelos guerreiros e pelos sacerdotes de então. Em época de escassez, não havia excedente. Contudo, os sacerdotes e guerreiros retinham tanto como nos tempos de abundância, resultando, por esse motivo, que os trabalhadores passavam fome. (...)
É evidente que, nas primitivas comunidades, os camponeses se deixados à vontade, não se teriam privado do escasso excedente que sustentava os sacerdotes e os guerreiros, mas teriam ou produzido menos ou consumido mais. A princípio, a força bruta compeliu-os a produzir e a se desfazer do excedente. Todavia, pouco a pouco, foi possível induzir muitos deles a aceitarem uma ética, segundo a qual era de seu dever trabalhar arduamente, se bem que uma parte de seu trabalho viesse a manter outros na ociosidade.”


“Até nossos dias 99% dos assalariados ingleses ficariam verdadeiramente chocados se fosse proposto que o rei não tivesse renda maior que a de um trabalhador qualquer. A concepção do dever, historicamente falando, tem sido um meio usado pelos detentores do poder para induzirem os outros a viverem mais para os interesses dos patrões que para os seus próprios. Naturalmente, os que estão com o poder ocultam esse fato, fazendo acreditar que os seus interesses são idênticos aos maiores interesses da humanidade.”






“A técnica moderna tornou o lazer possível, a fim de diminuir consideravelmente a quantidade de trabalho exigida para assegurar a subsistência de todos. Isso se tornou evidente durante a guerra. Naquela época, todos os homens das forças armadas, todos os homens e mulheres ocupados na produção de munições, nos serviços de espionagem, na propaganda de guerra ou nos departamentos oficiais relacionados com a guerra, foram retirados de outras ocupações produtivas. A despeito disso, o nível de bem-estar físico entre os assalariados inexperientes do lado dos Aliados era mais elevado do que antes. A significação desse fato acha-se oculta no princípio financeiro. Tomar emprestado é alimentar o presente com o futuro. Mas teria sido naturalmente impossível - um homem não pode comer um pão que ainda não existe. A guerra demonstrou, de modo explícito, que, pela organização científica da produção, é possível manter as populações modernas com regular conforto, numa pequena parte do âmbito de trabalho do mundo moderno. Se, no fim da guerra, a organização científica que foi criada para libertar o homem do trabalhado relacionado com a luta e as munições tivesse sido conservada e as horas de trabalho diminuídas para quatro, tudo estaria muito bem. Mas, em lugar disso, o velho caso foi reestabelecido e aqueles cujo trabalho era reclamado tiveram que trabalhar longas horas e o resto morrer de fome, por falta de emprego. Porque o trabalho é um dever, e um homem não poderia receber salário na proporção do que produzia, mas na proporção de seu valor, demonstrado no trabalho.”


“Se o trabalhador comum trabalhasse quatro horas por dia, isto seria o suficiente para todos, e não haveria falta de emprego, admitindo-se uma dose muito moderada de sensata organização. Essa ideia choca os endinheirados porque eles estão certos de que o pobre não saberia como empregar tanto “lazer”. Nos Estados Unidos, os homens, muitas vezes, trabalham longas horas mesmo quando já são endinheirados.”





“Deve-se admitir que o uso acertado do “lazer” é um produto da civilização e da educação. Um homem que trabalhou longas horas durante toda a vida, ficará enfadado se, de repente, ficar sem ter o que fazer. Mas, sem um razoável descanso, o homem sentir-se-á privado de muitas das melhores coisas. Nenhum motivo existe para que a maioria do povo deva sofrer dessa privação. Somente um ascetismo insensato nos faz continuar a insistir em que se deva trabalhar, excessivamente, agora que essa necessidade já não existe.”


“A atitude das classes dirigentes - especialmente a das que realizam a propaganda educacional - no que diz respeito à dignidade do trabalho, é quase exatamente a que as classes dirigentes do mundo têm sempre tido para com o que era chamado o “pobre honesto”. Diligência, sobriedade, boa vontade para trabalhar longas horas, a fim de obter vantagens remotas, até mesmo a submissão à autoridade, tudo isso reaparece.”





“Pouco nos importamos com a justiça econômica, de modo que uma grande porcentagem de lucro da produção total, se canaliza para uma parte mínima da população, dentro da qual há muitos que não executam trabalho de espécie alguma. Em vista da ausência de qualquer controle central para a produção, fabricamos um monte de coisas que não são necessárias. Podemos conservar uma grande porcentagem da população operária na ociosidade, porque nos é dado dispensar o seu trabalho, fazendo com que os outros trabalhem excessivamente. Quando todos esses métodos se tornarem inadequados, o resultado será a guerra. Induzimos um certo número de pessoas a fabricarem altos explosivos e outros a fazê-los explodirem, como se fossem crianças que tivessem acabado de descobrir fogos de artifício. Por uma combinação de todos esses inventos, fazemos o possível, ainda que com dificuldade, para conservar viva a noção de que uma grande parte de árduo trabalho manual deve ser o quinhão do homem médio.”


“A solução nacional, logo que for possível atender as necessidades e o conforto de todos, seria reduzir, gradualmente, as horas de trabalho, permitindo que o voto popular decidisse qual das duas coisas seria prefirível - mais “lazer” ou mais “mercadorias”. Mas, tendo sido ensinado a suprema virtude do trabalho penoso, é difícil ver como as autoridades possam almejar um paraíso no qual haja mais lazer e menos trabalho. Parece mais provável que eles possam encontrar novos planos, segundo os quais a ociosidade presente deva ser sacrificada em benefício da futura produtividade.”







“Se perguntarmos ao trabalhador o que pensa a respeito da melhor parte de sua vida, provavelmente não responderá: “gosto do trabalho manual porque estou cumprindo a mais nobre tarefa do homem e gosto de pensar como o homem é capaz de transformar este planeta. É verdade que meu corpo exige períodos de repouso e que tenha de fazê-lo da melhor maneira possível, mas nunca me sinto tão feliz, como quando o dia amanhece, e posso voltar ao trabalho do qual brota todo o meu contentamento”. Jamais ouvi um operário expressar-se desse modo. Eles consideram o trabalho como deveria ser considerado, isto é, como um meio de subsistência e é das suas horas de lazer que eles tiram a felicidade - seja ela qual for - que possam gozar.”


“O homem moderno julga que tudo deve ser feito por causa de alguém mais e nunca tão somente em seu próprio interesse.”





“O indivíduo em nossa sociedade trabalha para ter lucro. Mas o fim social de seu trabalho está no consumo do que ele produz. É este divórcio entre o indivíduo e o objetivo social da produção que torna difícil, para os homens, pensarem com clareza num mundo onde o lucro é o incentivo da indústria. Pensamos muitíssimo na produção e pouquíssimo no consumo. Um dos resultados é que emprestamos pouca importância ao gozo e à felicidade e não julgamos a produção pelo prazer que ela proporciona ao consumidor.


Quando sugiro que as horas de trabalho devam ser reduzidas a quatro não estou fazendo supor que o resto do tempo seja gasto em meras futilidades. O que eu quero dizer é que quatro horas de trabalho habilitam um homem para as necessidades e o conforto elementares da vida e que o resto do tempo poderia ser empregado, como lhe aprouvesse, em coisa úteis. É parte indispensável de qualquer sistema social que a educação deveria ser levada muito além do que ela o é, presentemente, e, em parte, teria por objetivo tornar o homem capaz de usar o “lazer” inteligentemente. E quero, sobretudo, acentuar que não estou pensando em coisas que poderiam ser consideradas “altamente intelectuais”. As danças campesinas se extinguiram, exceto nas zonas rurais longínquas, mas os estímulos que causaram o seu cultivo ainda devem existir na natureza humana. Os prazeres das populações urbanas têm se tornado, sobretudo, passivos, como ir ao cinema, assistir a uma partida de futebol, ouvir uma sessão de rádio, e assim por diante. Isso resulta do fato de suas energias terem sido absorvidas inteiramente pelo trabalho. Se elas tivessem uma vida de mais “lazer”, poderiam usufruir prazeres nos quais tomassem parte mais ativa.”





“Este sistema de existir uma classe sem ocupação, hereditária, isenta de deveres, foi, todavia, extremamente nocivo. Nenhum dos membros da classe foi instruído no sentido de ser trabalhador e a classe, como um todo, não era excepcionalmente inteligente. A classe pôde produzir um Darwin, mas, em face dele, se encontravam milhares de cavalheiros que nunca pensaram em coisa mais inteligente do que caçar raposas e castigar caçadores furtivos. No momento, as universidades estão em condições de fornecer, de um modo sistemático, o que a classe sem ocupação forneceu acidentalmente, como um subproduto. Isso constitui um grande melhoramento, mas apresenta certas desvantagens. A vida universitária é tão diferente do mundo em liberdade que o homem que vive num milieu acadêmico tende a desconhecer as preocupações e problemas do homem e da mulher; além disso, a maneira de se exprimirem causa uma influência contrária a que deveriam causar sobre o público em geral.”


“Num mundo onde ninguém é obrigado a trabalhar mais do que quatro horas por dia, todo indivíduo, possuído de curiosidade científica, será capaz de entregar-se a ela, e todo pintor poderá preparar os melhores quadros sem morrer de fome. Os jovens escritores não serão obrigados a escreverem coisas sensacionais para atrair a atenção, tendo em vista adquirir a independência econômica necessária, para escrever obras monumentais para o que aliás, chegado o momento, já terão perdido o gosto e a capacidade. Os homens que, em seu trabalho profissional, se tornaram interessados por determinado aspecto da economia política ou do governo, serão capazes de desenvolver suas ideias, sem a separação acadêmica, a qual torna carente de realidade o trabalho dos economistas universitários. O médico terá tempo para se por em dia com os progressos da medicina, o professor não terá de lutar exasperadamente para ensinar, por métodos rotineiros, coisas que aprenderam na mocidade, e que, com o correr dos tempos, ficou provado não serem verdadeiras.
Sobretudo, haverá felicidade e alegria de viver, em vez de nervos em frangalhos, desgaste e dispepsia. O trabalho deve ser dosado para tornar o “lazer” delicioso e nunca para produzir o esgotamento. Uma vez que os homens não se cansam em suas horas de “lazer”, a eles pouco importa que os divertimentos sejam passivos ou insípidos. Pelo menos, um por cento, provavelmente, dedicará o tempo que não foi gasto em pesquisas de alguma importância pública e, uma vez que não dependem dessas mesmas pesquisas para sua manutenção, sua originalidade terá livre curso e não haverá mais necessidade de conformar-se com padrões estabelecidos pelos pundites de idade madura.





Mas, não é somente nesses casos excepcionais que as vantagens do “lazer” aparecerão. Ordinariamente, os homens e as mulheres comuns que têm a oportunidade de uma vida feliz se tornarão mais bondosos, menos opressores e menos inclinados a ver os outros com suspeita. O gosto pela guerra desaparecerá, em parte, por essa razão e, em parte, porque implica um grande e severo trabalho para todos. A boa índole é a única entre todas as qualidades morais a de que mais precisa o mundo, e a boa índole é o resultado do sossego e da segurança para todos; mas, em vez disso, o que escolhemos foi o trabalho demais para uns e a fome para outros. Até agora, continuamos a ser tão ativos quanto o éramos antes da existência das máquinas. Por este ponto de vista, temos sido insensatos, mas não há razão para continuarmos a sê-lo indefinidamente.”


Nenhum comentário:

Postar um comentário