No livro CONTRAPONTO, o
casal Mark e Mary Rampion são um exemplo perfeito do contraste entre pobreza e
riqueza. Ele, pobretão e culto; ela, nobre, rica e fútil. Casam-se. E passam
por todas as etapas de um relacionamento: paixão, amor, fastio etc. No começo,
como sempre, tudo são flores. É desse momento que destacamos o seguinte trecho:
Para
Rampion havia também uma espécie de obrigação moral de viver a vida dos pobres.
Mesmo quando ele já estava tendo um rendimento perfeitamente razoável, o casal
mantinha apenas uma criada e continuava a fazer sozinho uma grande parte do
trabalho doméstico. [...] Viver como rico, numa confortável abstração dos
cuidados materiais, seria – sentia ele – uma espécie de traição à sua classe, à
sua própria gente.
[...]
Havia ocasiões em que Mark odiava aquela obrigação moral, porque sentia que ela
o estava compelindo a fazer coisas tolas e ridículas; e, odiando-a, tentava
revoltar-se contra ela. Como ficara absurdamente escandalizado, por exemplo,
diante do hábito que Mary tinha de ficar na cama de manhã! Quando ela sentia
preguiça, não se levantava e acabou-se. A primeira vez que isso aconteceu,
Rampion ficou verdadeiramente angustiado.
-
Mas tu não podes ficar na cama toda a manhã – protestara ele.
-
Por que não?
-
Por que não? Porque não podes.
-
Mas
eu posso – disse Mary calmamente. –
Posso e fico.
Achou
aquilo chocante. Sem motivo, como percebeu ele mesmo ao tentar analisar os
próprios sentimentos. Mas, apesar de tudo, ficou escandalizado. Ficou
escandalizado porque ele sempre se levantara cedo, porque toda a sua gente
tinha sido obrigada a deixar sempre a cama cedo. Ficou escandalizado porque não
se devia ficar na cama enquanto os outros estavam de pé a trabalhar. Levantar
tarde era, de certo modo, uma afronta. E, no entanto, o fato de uma pessoa
levantar cedo sem necessidade não auxiliava em nada as outras que levantavam
cedo por obrigação. Levantar quando nada nos obriga a isso é simplesmente um
tributo de respeito, como descobrir-se numa igreja. E, ao mesmo tempo, é um sacrifício
propiciatório para apaziguar a própria consciência.
“Não
se deve pensar assim”, refletia Mark Rampion.
[...]
E lembrou-se deste verso de Walt Whitman sobre os animais: “Eles não padecem
nem se lamentam por causa de sua condição. Não passam as noites em claro,
chorando seus pecados”. Mary era assim; era bom ser assim. Ser um perfeito
animal e ao mesmo tempo uma criatura humana perfeita, eis o ideal... Apesar de
tudo, Mark ficava escandalizado quando Mary não se levantava de manhã.
Procurava não ficar, mas ficava. Rebelando-se, permanecia algumas vezes na cama
também, até meio dia; por princípio. Era seu dever não ser um bárbaro da
consciência. Mas foi preciso muito tempo para que ele pudesse gozar
verdadeiramente da sua preguiça.
(CONTRAPONTO; Aldous
Huxley
– tradução de Érico Veríssimo e Leonel Vallandro)
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